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São Paulo, sábado, 20 de dezembro de 2003

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WALTER SALLES

Pais e filhos

Começo pelo mais difícil: depois de quatro anos de convivência, terei que me afastar desta coluna por um ano. Um filme que estréia, outro que começa. Faltam cada vez mais horas no dia e dias na semana. Chegou o tempo de parar um pouco. Nesse ano sabático ma non troppo, continuarei a escrever para a Ilustrada, com uma periodicidade mais livre do que a coluna permite.
Durante esses anos, não me senti muitas vezes à altura do espaço que me foi oferecido. Tentei falar da área que me é mais próxima, o cinema. Por uma questão ética, não pude abordar filmes como "Madame Satã" ou "Edifício Master", dos quais nossa produtora participou. Pela mesma razão, não me foi possível entrar na discussão em torno de "Cidade de Deus".
Foi nessas horas que recorri a relatos mais pessoais para escrever a coluna. É um desses relatos que gostaria de dividir com o leitor neste último texto. Nunca pensei poder compartir publicamente essa estória, até que um amigo, Caíque Botkay, me pediu um depoimento ligado ao tema da memória para um livro.
Essa história nos foi contada por uma amiga de infância de meu pai, no dia em que ele morreu. Ela havia convivido com meu pai no interior de Minas Gerais. Estamos em Pouso Alegre, em 1917. Cidade de 500 habitantes, poucos serviços básicos. Naquele momento, o menino de cinco anos que meu pai foi está prestes a ser enviado para cursar o primário numa cidade maior, Poços de Caldas, e não está gostando nada dessa idéia.
O trajeto, feito a lombo de burro, demora oito horas. João, meu avô, então dono de um armazém de secos e molhados, improvisa uma cesta de palha para aninhar o menino durante o percurso.
Despedidas, separação dos irmãos menores, menino colocado dentro do cesto, tampa fechada. Começa a jornada. O burro avança e cobre terreno, conduzido pela mão do meu avô.
O tempo passa. O menino, ainda dentro do seu cestinho. Até que toma coragem e, vencendo o equilíbrio precário, coloca-se de pé. Abre a tampa do cesto e desvenda aquilo que lhe era desconhecido. O horizonte. Pela primeira vez, consegue mirar além das montanhas que delimitavam a sua percepção do mundo. E o menino apaixona-se por aquilo que vê.
Se é verdade que, como sugere Borges, somos ao mesmo tempo e a cada instante aquilo que já fomos e aquilo que um dia seremos, então esse terá sido um momento de síntese. O instante em que o futuro se projetou em direção ao passado. Penso que o homem que meu pai foi nunca deixou de ser, intrinsecamente, aquele menino que abriu o cesto de palha, que se encantou com o que viu, mas continuou a preferir pastel de queijo Minas com arroz e feijão a qualquer outra iguaria.
O homem no qual o menino se transformou não está mais aqui. Hoje, o seu filho escreve essas linhas em um aeroporto, a caminho de Buenos Aires. Quartos de hotel, aeroportos, estradas. Percebe que seus cabelos também estão ficando grisalhos. No sentido inverso ao do pai, o filho sente falta das montanhas que delimitam um território onde é possível assentar-se, mesmo que na penumbra da memória.
PS - Antes de partir, alguns agradecimentos. Aos editores do jornal, que sempre me permitiram falar com total liberdade. A Karim Aïnouz, que me ajudou a tornar os textos desta coluna um pouco menos erráticos. E ao leitor, que teve a generosidade de lê-los. Até breve e um bom 2004 para todos.


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