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WALTER SALLES
Pais e filhos
Começo pelo mais difícil:
depois de quatro anos de
convivência, terei que me afastar
desta coluna por um ano. Um filme que estréia, outro que começa.
Faltam cada vez mais horas no
dia e dias na semana. Chegou o
tempo de parar um pouco. Nesse
ano sabático ma non troppo, continuarei a escrever para a Ilustrada, com uma periodicidade mais
livre do que a coluna permite.
Durante esses anos, não me
senti muitas vezes à altura do espaço que me foi oferecido. Tentei
falar da área que me é mais próxima, o cinema. Por uma questão
ética, não pude abordar filmes
como "Madame Satã" ou "Edifício Master", dos quais nossa produtora participou. Pela mesma
razão, não me foi possível entrar
na discussão em torno de "Cidade de Deus".
Foi nessas horas que recorri a
relatos mais pessoais para escrever a coluna. É um desses relatos
que gostaria de dividir com o leitor neste último texto. Nunca
pensei poder compartir publicamente essa estória, até que um
amigo, Caíque Botkay, me pediu
um depoimento ligado ao tema
da memória para um livro.
Essa história nos foi contada
por uma amiga de infância de
meu pai, no dia em que ele morreu. Ela havia convivido com
meu pai no interior de Minas Gerais. Estamos em Pouso Alegre,
em 1917. Cidade de 500 habitantes, poucos serviços básicos. Naquele momento, o menino de cinco anos que meu pai foi está prestes a ser enviado para cursar o
primário numa cidade maior,
Poços de Caldas, e não está gostando nada dessa idéia.
O trajeto, feito a lombo de burro, demora oito horas. João, meu
avô, então dono de um armazém
de secos e molhados, improvisa
uma cesta de palha para aninhar
o menino durante o percurso.
Despedidas, separação dos irmãos menores, menino colocado
dentro do cesto, tampa fechada.
Começa a jornada. O burro
avança e cobre terreno, conduzido pela mão do meu avô.
O tempo passa. O menino, ainda dentro do seu cestinho. Até
que toma coragem e, vencendo o
equilíbrio precário, coloca-se de
pé. Abre a tampa do cesto e desvenda aquilo que lhe era desconhecido. O horizonte. Pela primeira vez, consegue mirar além
das montanhas que delimitavam
a sua percepção do mundo. E o
menino apaixona-se por aquilo
que vê.
Se é verdade que, como sugere
Borges, somos ao mesmo tempo e
a cada instante aquilo que já fomos e aquilo que um dia seremos,
então esse terá sido um momento
de síntese. O instante em que o
futuro se projetou em direção ao
passado. Penso que o homem que
meu pai foi nunca deixou de ser,
intrinsecamente, aquele menino
que abriu o cesto de palha, que se
encantou com o que viu, mas
continuou a preferir pastel de
queijo Minas com arroz e feijão a
qualquer outra iguaria.
O homem no qual o menino se
transformou não está mais aqui.
Hoje, o seu filho escreve essas linhas em um aeroporto, a caminho de Buenos Aires. Quartos de
hotel, aeroportos, estradas. Percebe que seus cabelos também estão
ficando grisalhos. No sentido inverso ao do pai, o filho sente falta
das montanhas que delimitam
um território onde é possível assentar-se, mesmo que na penumbra da memória.
PS - Antes de partir, alguns
agradecimentos. Aos editores do
jornal, que sempre me permitiram falar com total liberdade. A
Karim Aïnouz, que me ajudou a
tornar os textos desta coluna um
pouco menos erráticos. E ao leitor, que teve a generosidade de lê-los. Até breve e um bom 2004 para
todos.
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