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JOÃO PEREIRA COUTINHO
O livro dos mortos
Em 1993, o fotógrafo inglês Martin Parr dedicou álbum a casais que vivem juntos, em público, mas são solitários
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COMEÇA A ser obsessão minha,
que partilho com o leitor:
sento-me num café ou num
restaurante, em Portugal ou fora dele. Mas o cenário, invariavelmente, é
citadino. E então contemplo. Mas
contemplo o quê?
Contemplo ruínas, porque as ruínas sempre alimentaram almas românticas. Falo de casais com idades
variáveis, com filhos ou sem, normalmente sem, que respiram, comem e bebem sem trocar palavra ou
olhar. Consultam o cardápio. Encomendam. Esperam (em silêncio).
Comem (em silêncio). Ficam parados no vazio depois de cruzar a faca e
o garfo (em silêncio). E quando se
olham -pela primeira vez em 20, 30
minutos- é só para confirmar se
chegou a hora da conta. Pagam, levantam-se, vão. Em silêncio. Por
sorte nenhum deles se levanta primeiro e vai embora sem avisar. O
outro ficaria onde está. Em silêncio.
Eu julgava que este estranho hábito era só meu. Existem pessoas que
preferem monumentos, lojas ou
museus quando aterram em solo urbano. Eu faço parte das pessoas que
preferem pessoas. Em cada memória de uma cidade, onde estive ou vivi, o que restam são pessoas. E também esses rostos de silêncio que
atravessam as horas na mais profunda solidão que existe: a solidão de
dois, vivida a dois, em que o tempo
passou mas, ao contrário de um verso de Rilke, nenhum é já o guardião
do outro.
Sim, eu julgava que este estranho
hábito era só meu. Engano. Sei agora
que, em 1993, o fotógrafo inglês
Martin Parr dedicou livro ao assunto: um álbum com título simples
("Bored Couples") e casais em público que vivem juntos, mas não necessariamente um com o outro. Parr,
nascido em 1952, estudou fotografia
em Manchester e hoje ensina no
País de Gales. Tem três dezenas de
livros publicados e uma obra que,
palavras do próprio, recusa o rótulo
de "artística". Ele limita-se a documentar a realidade, sem intromissão ou julgamento.
Não cabe aqui uma discussão sobre o estatuto "artístico" de Parr:
"documentar a realidade" em fotografias de expressão artesanal pode
ser uma reatualização do espírito
realista que, no século 19, também
captava as faces cansadas, e ausentes, de passageiros regressando a casa sob a luz triste e artificial de um
vagão de terceira classe.
Mas as fotografias de Parr são
mais do que documentos. São um
convite à intromissão: do olhar, primeiro; e da imaginação, depois.
Cada uma delas permite a nossa
atenção clínica a duas ausências; o
espanto e a comiseração pelo naufrágio evidente; e a pura invenção de
histórias ficcionais para personagens banais, imaginando origens e
destinos e a forma como o amor, se
algum dia existiu, se foi esboroando
até só restar nada de nada. E, provavelmente, sem ninguém contar: o
coração parou de bater, os corpos ficaram no meio da sala, a TV, a meio
som. Até ao dia em que os vizinhos
começaram a bater à porta, cansados do ruído, reclamando do cheiro.
Diz a canção que não há coisa mais
triste do que o amor quando se desfaz. Mas há, sim: é um amor que se
desfaz, deixando ficar apenas dois
cadáveres por enterrar.
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