São Paulo, quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

O livro dos mortos


Em 1993, o fotógrafo inglês Martin Parr dedicou álbum a casais que vivem juntos, em público, mas são solitários

COMEÇA A ser obsessão minha, que partilho com o leitor: sento-me num café ou num restaurante, em Portugal ou fora dele. Mas o cenário, invariavelmente, é citadino. E então contemplo. Mas contemplo o quê?
Contemplo ruínas, porque as ruínas sempre alimentaram almas românticas. Falo de casais com idades variáveis, com filhos ou sem, normalmente sem, que respiram, comem e bebem sem trocar palavra ou olhar. Consultam o cardápio. Encomendam. Esperam (em silêncio). Comem (em silêncio). Ficam parados no vazio depois de cruzar a faca e o garfo (em silêncio). E quando se olham -pela primeira vez em 20, 30 minutos- é só para confirmar se chegou a hora da conta. Pagam, levantam-se, vão. Em silêncio. Por sorte nenhum deles se levanta primeiro e vai embora sem avisar. O outro ficaria onde está. Em silêncio.
Eu julgava que este estranho hábito era só meu. Existem pessoas que preferem monumentos, lojas ou museus quando aterram em solo urbano. Eu faço parte das pessoas que preferem pessoas. Em cada memória de uma cidade, onde estive ou vivi, o que restam são pessoas. E também esses rostos de silêncio que atravessam as horas na mais profunda solidão que existe: a solidão de dois, vivida a dois, em que o tempo passou mas, ao contrário de um verso de Rilke, nenhum é já o guardião do outro.
Sim, eu julgava que este estranho hábito era só meu. Engano. Sei agora que, em 1993, o fotógrafo inglês Martin Parr dedicou livro ao assunto: um álbum com título simples ("Bored Couples") e casais em público que vivem juntos, mas não necessariamente um com o outro. Parr, nascido em 1952, estudou fotografia em Manchester e hoje ensina no País de Gales. Tem três dezenas de livros publicados e uma obra que, palavras do próprio, recusa o rótulo de "artística". Ele limita-se a documentar a realidade, sem intromissão ou julgamento.
Não cabe aqui uma discussão sobre o estatuto "artístico" de Parr: "documentar a realidade" em fotografias de expressão artesanal pode ser uma reatualização do espírito realista que, no século 19, também captava as faces cansadas, e ausentes, de passageiros regressando a casa sob a luz triste e artificial de um vagão de terceira classe.
Mas as fotografias de Parr são mais do que documentos. São um convite à intromissão: do olhar, primeiro; e da imaginação, depois.
Cada uma delas permite a nossa atenção clínica a duas ausências; o espanto e a comiseração pelo naufrágio evidente; e a pura invenção de histórias ficcionais para personagens banais, imaginando origens e destinos e a forma como o amor, se algum dia existiu, se foi esboroando até só restar nada de nada. E, provavelmente, sem ninguém contar: o coração parou de bater, os corpos ficaram no meio da sala, a TV, a meio som. Até ao dia em que os vizinhos começaram a bater à porta, cansados do ruído, reclamando do cheiro.
Diz a canção que não há coisa mais triste do que o amor quando se desfaz. Mas há, sim: é um amor que se desfaz, deixando ficar apenas dois cadáveres por enterrar.


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