São Paulo, quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

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Comida

NINA HORTA

Do outro lado do balcão

Homenageio meus leitores representando-os através de um e-mail de comidas que se foram

VOCÊS ACREDITAM que os Reis Magos tenham vindo de tão longe até uma manjedoura caindo de pobre, com presentes de jóias e perfumes para uma mulher que recém parira um deus e para um pai exausto? Alguma sensibilidade haviam de ter e, se não tinham, as mulheres que os acompanhavam, claro, imediatamente devem ter posto mãos à obra com comida de alma.
Canja para a parturiente, cordeiro bem molinho para o pai, estas coisas que ninguém conta e ficam só na mirra, no ouro, para dar mais glória à cena. Homenageio hoje meus leitores tão participantes, representando-os através do último e-mail de comidas que se foram buraco à dentro enviado por Neuzi Barbarini -horrivelmente cortado por mim, para caber no espaço.
"Hoje me deu vontade de comentar sua crônica de comidas desaparecidas num almoço com colegas de trabalho. O cardápio era um barreado completo, pois estamos em Curitiba e a faculdade tem um projeto comunitário na cidade de Morretes, uma cidadezinha linda, encravada no pé da serra do Mar, onde dizem que o prato foi criado. O que deu origem à conversa foi a dramatização que os homens fizeram (foram eles os cozinheiros) da dificuldade de achar carne de segunda para preparar o barreado. Viraram todos os supermercados e açougues da região (classe média alta) e não acharam nada, além de receberem olhares estranhados de "isso-não-é-carne-que-se-peça". Pois é, a luta de classes chegou também nos açougues, traseiro para os ricos e dianteiro para os pobres. Encontraram a carne numa favela próxima à faculdade. E é claro que começamos a falar das comidas desaparecidas, principalmente os do interior, que traziam lembranças da farinha-de-biju com leite, açúcar e canela, farofa de ovos com banana. Lembrei-me das comidas de minha avó, porque era só ela que fazia daquele jeito. Do fogão de lenha e panelas de ferro saíam lombos recheados (que eram feitos na panela, e não assados) e ficavam inacreditavelmente macios. Bucho de boi, que ela passava o dia limpando, aferventando várias vezes e raspando com faca até que ficasse branquinho (sem ficar branquelo como estes que são limpos com água sanitária) e que depois eram cozidos com um molho de tomate e cheiro-verde, aroma e sabor vindos não sei de onde, pois este negócio tem um cheiro ruim pra burro na fase da limpeza.
Na categoria "carnes", tinha ainda uma posta que era deixada no fogão enquanto ela fazia o jantar. Dormia ali, sempre na panela de ferro, aproveitando o quentinho das brasas e, no dia seguinte, o fogo já era aceso cedo para que ela "acabasse de chegar", como dizia minha mãe. [...] E o arroz doce que faço igualzinho, com açúcar queimado bem cozido, fica como um creme de arroz, cheiroso e saboroso. E um doce que que ninguém tinha ouvido falar, que é polenta de laranja, fácil de fazer, mas não faço porque tem que ser com laranjas azedas, e onde encontrar isto hoje? Acho que nem no interior tem mais, aquelas laranjas de fazer caretas, pelo menos eu nunca mais vi. É... lembrar dessas coisas é bom."
E feliz Natal, leitores, com o presente do bolo de papoulas prometido para aqueles que já sabem cozinhar um pouco, receita de caderno de Ana Kovacs, feito pela Ana que não é Kovacs. Derreter 100 g de açúcar num copo de água. Acrescentar 250 g de papoula moída ou socada. Deixar ferver e escorrer a água. Acrescentar 1 copo de suco de laranja e mais 1/2 copo de vinho tinto. Deixar ferver mais uns minutos e reservar. Misturar 5 gemas com 120 g de açúcar. Acrescentar 5 claras em neve, mais 50 g de uvas-passas ou frutas cristalizadas. Misturar tudo muito bem e acrescentar a mistura de papoula. Assar em forno preaquecido em fôrma forrada de papel-manteiga ou untada. Deixar o bolo esfriar, cortar ao meio e rechear com uma fina camada de geléia não muito doce.


ninahorta@uol.com.br

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