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Crítica/"Os Irmãos Karamázov"
Tradutor recria caráter direto e até rude de Dostoiévski
Paulo Bezerra faz corajoso posfácio explicitando escolhas
estilísticas e se rebela contra "canonizadores" do autor russo
IRINEU FRANCO PERPETUO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Para revisitar um clássico, motivos não deveriam faltar. Mas, se você
sentir certo medo ou preguiça
diante das mais de mil páginas
(divididas em dois volumes) de
"Os Irmãos Karamázov", de
Dostoiévski, tem na nova tradução, feita diretamente do
russo por Paulo Bezerra, uma
razão mais do que excelente para encarar a empreitada.
Não se trata aqui de fazer "tábula rasa" das versões anteriores da monumental criação
dostoievskiana.
Embora hoje renegada pelo
decano da tradução russa no
Brasil, a pioneira versão de Boris Schnaiderman, feita sob o
pseudônimo de Boris Solomonov, em 1944, está longe de ser
desprovida de méritos. E tentativas feitas por autores que desconheciam o idioma eslavo, e
partiam de edições francesas
da obra, possuíam o inegável
mérito de divulgar um romance que, de outra forma, permaneceria inédito no Brasil.
Assim, a tradução de Paulo
Bezerra brilha menos pelos defeitos das anteriores do que por
suas próprias virtudes.
Experiente, ele já demonstrou vasta familiaridade com o
universo do autor de "Crime e
Castigo"; para não ir muito longe, basta lembrar o elucidativo
trabalho feito com "Os Demônios", em que suas notas de rodapé desempenham papel fundamental na elucidação das
inúmeras alusões ao contexto
político e intelectual da Rússia
do século 19, nas quais reside
não apenas grande parte da força, mas também a própria razão
de ser deste impactante romance político.
Nos "Karamázov", o trabalho
de guiar o leitor por este cipoal
de referências é comparativamente menos espinhoso.
A tarefa do tradutor, aqui, é
não se prender a conceitos pré-estabelecidos de "bom gosto" e
tentar recriar o caráter direto e
até rude da prosa de Fiódor
Dostoiévski (1821-1881).
Corajoso posfácio
Como já foi apontado mais de
uma vez, Dostoiévski chegou a
ser acusado de "escrever mal",
já que sua prosa passa bem longe do asseado e artificial modelo parnasiano que o senso comum associa ao paradigma de
"bem escrever".
Não seria difícil, por sinal,
classificar seu estilo de "deselegante", pelas repetições de palavras, pela pontuação peculiar
e também pelos malabarismos
de sintaxe.
Em vez de "embelezar" o
"clássico", Bezerra recupera
seu vigor, deixando propositadamente sem aparar as arestas
e dissonâncias que constituem
as características fundamentais da escrita dostoievskiana,
além de evidenciar os diferentes registros de linguagem empregados pelos distintos personagens do livro.
O tradutor não se furta, ainda, a um corajoso posfácio, no
qual explicita não apenas suas
escolhas estilísticas e lingüísticas, como revela uma visão do
romance que se rebela francamente contra os chamados "canonizadores antigos e atuais de
Dostoiévski".
Partindo de Bákhtin, Bezerra
defende a independência dos
personagens do romance com
relação a seu autor, rejeitando,
assim, a identificação automática das idéias e palavras de
Ivan Karamázov com o que diz
e pensa o próprio Dostoiévski.
Caracterizando o autor como
homem "conflituosamente religioso", Bezerra afirma, taxativamente, que "reduzir tudo à
religião deforma o sentido amplo e profundo da obra de Dostoiévski, especialmente de "Os
Irmãos Karamázov'", em saudável convite à reflexão -e
também à polêmica.
OS IRMÃOS KARAMÁZOV
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Paulo Bezerra
Editora: 34
Quanto: R$ 98 (1.040 págs, em dois
volumes)
Avaliação: ótimo
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