São Paulo, sábado, 20 de dezembro de 2008

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Crítica/"Os Irmãos Karamázov"

Tradutor recria caráter direto e até rude de Dostoiévski

Paulo Bezerra faz corajoso posfácio explicitando escolhas estilísticas e se rebela contra "canonizadores" do autor russo

IRINEU FRANCO PERPETUO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Para revisitar um clássico, motivos não deveriam faltar. Mas, se você sentir certo medo ou preguiça diante das mais de mil páginas (divididas em dois volumes) de "Os Irmãos Karamázov", de Dostoiévski, tem na nova tradução, feita diretamente do russo por Paulo Bezerra, uma razão mais do que excelente para encarar a empreitada.
Não se trata aqui de fazer "tábula rasa" das versões anteriores da monumental criação dostoievskiana.
Embora hoje renegada pelo decano da tradução russa no Brasil, a pioneira versão de Boris Schnaiderman, feita sob o pseudônimo de Boris Solomonov, em 1944, está longe de ser desprovida de méritos. E tentativas feitas por autores que desconheciam o idioma eslavo, e partiam de edições francesas da obra, possuíam o inegável mérito de divulgar um romance que, de outra forma, permaneceria inédito no Brasil.
Assim, a tradução de Paulo Bezerra brilha menos pelos defeitos das anteriores do que por suas próprias virtudes.
Experiente, ele já demonstrou vasta familiaridade com o universo do autor de "Crime e Castigo"; para não ir muito longe, basta lembrar o elucidativo trabalho feito com "Os Demônios", em que suas notas de rodapé desempenham papel fundamental na elucidação das inúmeras alusões ao contexto político e intelectual da Rússia do século 19, nas quais reside não apenas grande parte da força, mas também a própria razão de ser deste impactante romance político.
Nos "Karamázov", o trabalho de guiar o leitor por este cipoal de referências é comparativamente menos espinhoso.
A tarefa do tradutor, aqui, é não se prender a conceitos pré-estabelecidos de "bom gosto" e tentar recriar o caráter direto e até rude da prosa de Fiódor Dostoiévski (1821-1881).

Corajoso posfácio
Como já foi apontado mais de uma vez, Dostoiévski chegou a ser acusado de "escrever mal", já que sua prosa passa bem longe do asseado e artificial modelo parnasiano que o senso comum associa ao paradigma de "bem escrever".
Não seria difícil, por sinal, classificar seu estilo de "deselegante", pelas repetições de palavras, pela pontuação peculiar e também pelos malabarismos de sintaxe.
Em vez de "embelezar" o "clássico", Bezerra recupera seu vigor, deixando propositadamente sem aparar as arestas e dissonâncias que constituem as características fundamentais da escrita dostoievskiana, além de evidenciar os diferentes registros de linguagem empregados pelos distintos personagens do livro.
O tradutor não se furta, ainda, a um corajoso posfácio, no qual explicita não apenas suas escolhas estilísticas e lingüísticas, como revela uma visão do romance que se rebela francamente contra os chamados "canonizadores antigos e atuais de Dostoiévski".
Partindo de Bákhtin, Bezerra defende a independência dos personagens do romance com relação a seu autor, rejeitando, assim, a identificação automática das idéias e palavras de Ivan Karamázov com o que diz e pensa o próprio Dostoiévski.
Caracterizando o autor como homem "conflituosamente religioso", Bezerra afirma, taxativamente, que "reduzir tudo à religião deforma o sentido amplo e profundo da obra de Dostoiévski, especialmente de "Os Irmãos Karamázov'", em saudável convite à reflexão -e também à polêmica.


OS IRMÃOS KARAMÁZOV
Autor: Fiódor Dostoiévski Tradução: Paulo Bezerra Editora: 34 Quanto: R$ 98 (1.040 págs, em dois volumes) Avaliação: ótimo




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