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São Paulo, terça-feira, 21 de janeiro de 2003

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BERNARDO CARVALHO

Os homens sem imaginação

Um trecho de "Viagem ao Fim da Noite", de Céline (1894-1961), ficou me martelando a cabeça desde a noite de Ano Novo: "O canhão para eles era só barulho. Por causa disso é que as guerras podem durar. Nem os que a fazem, e enquanto a estão fazendo, imaginam. Com a bala na barriga, teriam continuado a apanhar sandálias velhas pela estrada, que "ainda podiam servir". Assim o carneiro, deitado de flanco, no prado, agoniza e ainda pasta. A maioria das pessoas só morre no último instante".
O narrador do primeiro romance do escritor francês, que acabou ficando tão conhecido pela genialidade literária quanto pelo seu direitismo e anti-semitismo, chega a essa conclusão, entre tantas outras, depois de passar, como o próprio autor, pela experiência da Primeira Guerra. E depois de entender que "existem para o pobre neste mundo duas grandes maneiras de morrer, seja pela indiferença absoluta de seus semelhantes em tempo de paz, seja pela paixão homicida dos mesmos quando chega a guerra".
Se esse sentimento pode assolar a cabeça de um francês, que é, por definição, um dos cidadãos mais ufanistas do planeta, que dirá de um pobre brasileiro, que mal sabe o que é cidadania e nada recebe em troca de seus sacrifícios pelo país em que vive, nem o mínimo necessário de saúde, educação e alimentação em tempo de paz?
Por uma estranha sincronia, eu mal tinha acabado de ler o trecho de "Viagem ao Fim da Noite" quando ouvi um desses sujeitos que, apesar da barriga (imensa), só enxergam o próprio umbigo, caráter aliás muito ilustrativo da parte mais pobre de espírito da elite local, a achincalhar a forma física e a aparência do presidente eleito, que se fazia acompanhar de um "personal trainer" numa foto publicada na imprensa na véspera da posse.
Não votei no Lula, mas também não consigo entender se à elite brasileira que lamenta e faz troça da "deselegância" do atual presidente em oposição à "saudosa elegância" de FHC falta imaginação ou se o problema é de imaginação em excesso. Em todo caso, uma coisa parece estar ligada à outra, num círculo vicioso. Por se imaginar em Genebra, o sujeito se torna incapaz de ver o país onde vive, para não falar do futuro que o espera se não encarar de uma vez por todas a realidade de que faz parte, e assumir as suas responsabilidades. Afinal, se todo mundo é contra a injustiça e a corrupção, por que elas perduram?
Os muros, as cercas eletrificadas e as guaritas que vão subindo de ano em ano em torno de casas e edifícios são, em última instância, uma tentativa desesperada e inútil de não ver e de não imaginar, e de não responder a essa pergunta. A guerra civil está instalada sem que tenha sido nomeada (segundo reportagem da TV Globo, em média sete pessoas morreram assassinadas por dia, em 2002, na Grande SP; só na primeira semana de 2003, houve 71 homicídios na região). E a falta de nome não deixa de ser consequência da falta de imaginação de uma parte da população cada vez mais aquartelada e encurralada, na tentativa inútil de não se sentir concernida.
A falta de imaginação é, no Brasil, uma forma passiva, inconsciente e inconsequente de suicídio. Falta imaginação a quem, contando com um regime de exceção e com a própria impunidade, acredita que a barbárie são os outros. Falta imaginação a quem se recusa a ver qualquer tipo de ligação entre os próprios atos, por mais inconsequentes que pareçam em seu oportunismo individualista, e uma cadeia de ações que o obrigará (e a seus pares) a andar com guarda-costas para não ser sequestrado. Falta imaginação a quem, mesmo que por vias tortas e indiretas, financia o tráfico e, por conseguinte, a própria insegurança, num país sitiado pelo crime organizado. Falta imaginação a quem contribui para manter um sistema judiciário corrupto. Falta imaginação a quem ignora o ônus social do despropósito de seus lucros inéditos e extraordinários. Falta imaginação a quem, por ganância, asfixia e espolia a sua fonte de renda e a de seus descendentes - no caso, o país. Falta imaginação a quem vota o aumento escandaloso do próprio salário, mas não as reformas que podem afetar os seus privilégios. Falta imaginação a quem posa de filantropo e benemérito para aumentar o próprio patrimônio, transferindo o dinheiro público, de impostos que poderiam ser convertidos em saúde e educação, para fundações privadas. Falta imaginação a quem lamenta a elegância perdida do presidente mas ignora que a concentração de renda no país se mantém em níveis vergonhosos pelos parâmetros de qualquer nação (desenvolvida ou não) do planeta. Falta imaginação a quem, como se não bastasse, ainda quer levar vantagem em tudo. Em resumo, falta imaginação a quem sonha com Genebra, mas se comporta como um colono no Congo. Falta imaginação a muita gente.
Por tudo isso, não é difícil imaginar que, mesmo com uma bala na barriga, o homem sem imaginação vai continuar olhando para o próprio umbigo. Ou, como o carneiro a que se referia Céline, vai continuar pastando, mesmo depois de já ter caído no prado, ferido, deitado de flanco, enquanto agoniza.


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