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BERNARDO CARVALHO
Os homens sem imaginação
Um trecho de "Viagem ao
Fim da Noite", de Céline
(1894-1961), ficou me martelando
a cabeça desde a noite de Ano Novo: "O canhão para eles era só barulho. Por causa disso é que as
guerras podem durar. Nem os que
a fazem, e enquanto a estão fazendo, imaginam. Com a bala na
barriga, teriam continuado a
apanhar sandálias velhas pela estrada, que "ainda podiam servir".
Assim o carneiro, deitado de flanco, no prado, agoniza e ainda
pasta. A maioria das pessoas só
morre no último instante".
O narrador do primeiro romance do escritor francês, que acabou
ficando tão conhecido pela genialidade literária quanto pelo seu
direitismo e anti-semitismo, chega a essa conclusão, entre tantas
outras, depois de passar, como o
próprio autor, pela experiência
da Primeira Guerra. E depois de
entender que "existem para o pobre neste mundo duas grandes
maneiras de morrer, seja pela indiferença absoluta de seus semelhantes em tempo de paz, seja pela paixão homicida dos mesmos
quando chega a guerra".
Se esse sentimento pode assolar
a cabeça de um francês, que é, por
definição, um dos cidadãos mais
ufanistas do planeta, que dirá de
um pobre brasileiro, que mal sabe
o que é cidadania e nada recebe
em troca de seus sacrifícios pelo
país em que vive, nem o mínimo
necessário de saúde, educação e
alimentação em tempo de paz?
Por uma estranha sincronia, eu
mal tinha acabado de ler o trecho
de "Viagem ao Fim da Noite"
quando ouvi um desses sujeitos
que, apesar da barriga (imensa),
só enxergam o próprio umbigo,
caráter aliás muito ilustrativo da
parte mais pobre de espírito da
elite local, a achincalhar a forma
física e a aparência do presidente
eleito, que se fazia acompanhar
de um "personal trainer" numa
foto publicada na imprensa na
véspera da posse.
Não votei no Lula, mas também
não consigo entender se à elite
brasileira que lamenta e faz troça
da "deselegância" do atual presidente em oposição à "saudosa
elegância" de FHC falta imaginação ou se o problema é de imaginação em excesso. Em todo caso,
uma coisa parece estar ligada à
outra, num círculo vicioso. Por se
imaginar em Genebra, o sujeito se
torna incapaz de ver o país onde
vive, para não falar do futuro que
o espera se não encarar de uma
vez por todas a realidade de que
faz parte, e assumir as suas responsabilidades. Afinal, se todo
mundo é contra a injustiça e a
corrupção, por que elas perduram?
Os muros, as cercas eletrificadas
e as guaritas que vão subindo de
ano em ano em torno de casas e
edifícios são, em última instância,
uma tentativa desesperada e inútil de não ver e de não imaginar, e
de não responder a essa pergunta.
A guerra civil está instalada sem
que tenha sido nomeada (segundo reportagem da TV Globo, em
média sete pessoas morreram assassinadas por dia, em 2002, na
Grande SP; só na primeira semana de 2003, houve 71 homicídios
na região). E a falta de nome não
deixa de ser consequência da falta de imaginação de uma parte
da população cada vez mais
aquartelada e encurralada, na
tentativa inútil de não se sentir
concernida.
A falta de imaginação é, no
Brasil, uma forma passiva, inconsciente e inconsequente de
suicídio. Falta imaginação a
quem, contando com um regime
de exceção e com a própria impunidade, acredita que a barbárie
são os outros. Falta imaginação a
quem se recusa a ver qualquer tipo de ligação entre os próprios
atos, por mais inconsequentes
que pareçam em seu oportunismo
individualista, e uma cadeia de
ações que o obrigará (e a seus pares) a andar com guarda-costas
para não ser sequestrado. Falta
imaginação a quem, mesmo que
por vias tortas e indiretas, financia o tráfico e, por conseguinte, a
própria insegurança, num país sitiado pelo crime organizado. Falta imaginação a quem contribui
para manter um sistema judiciário corrupto. Falta imaginação a
quem ignora o ônus social do despropósito de seus lucros inéditos e
extraordinários. Falta imaginação a quem, por ganância, asfixia
e espolia a sua fonte de renda e a
de seus descendentes - no caso, o
país. Falta imaginação a quem
vota o aumento escandaloso do
próprio salário, mas não as reformas que podem afetar os seus privilégios. Falta imaginação a
quem posa de filantropo e benemérito para aumentar o próprio
patrimônio, transferindo o dinheiro público, de impostos que
poderiam ser convertidos em saúde e educação, para fundações
privadas. Falta imaginação a
quem lamenta a elegância perdida do presidente mas ignora que
a concentração de renda no país
se mantém em níveis vergonhosos
pelos parâmetros de qualquer nação (desenvolvida ou não) do planeta. Falta imaginação a quem,
como se não bastasse, ainda quer
levar vantagem em tudo. Em resumo, falta imaginação a quem
sonha com Genebra, mas se comporta como um colono no Congo.
Falta imaginação a muita gente.
Por tudo isso, não é difícil imaginar que, mesmo com uma bala
na barriga, o homem sem imaginação vai continuar olhando para o próprio umbigo. Ou, como o
carneiro a que se referia Céline,
vai continuar pastando, mesmo
depois de já ter caído no prado,
ferido, deitado de flanco, enquanto agoniza.
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