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Crítica/"O Mestre e a Margarida"
Livro de Bulgákov guarda semelhanças com "Macunaíma"
Do mesmo período, obras mostram sociedades rasgadas pela opressão e autores modernistas de crítica social ácida
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Mário de Andrade escreveu "Macunaíma" ao longo de cinco dias, em 1927. O livro foi publicado em 1928. Mikhail Afanassievich Bulgákov escreveu
"O Mestre e a Margarida" ao
longo de 11 anos, de 1929 a
1940, em Moscou. Não haveria,
portanto, como um autor ter lido o outro, a não ser que o russo
lesse português, algo improvável. Mesmo assim -e mais ainda por causa disso- as semelhanças entre os dois romances
são impressionantes.
"O Mestre e a Margarida",
em nova tradução após mais de
uma década, narra a aparição
do diabo em Moscou, durante
os piores anos do stalinismo.
É claro que o diabo e seu séquito são de longe mais malignos que nosso pobre Macunaíma, cujas maldades não passam
de diatribes inofensivas. Mas a
malandragem, o humor, o ritmo vertiginoso, em forma de
mosaico (rapsódia, o caso do
brasileiro), as alternâncias narrativas, o artista como um
aproveitador da burocracia, a
denúncia -através do mal- de
males ainda maiores, como a
hipocrisia social e o culto à aparência são semelhanças gritantes demais.
Para arrematar as coincidências, uma personagem do romance russo morre gritando:
"As chaves! Minhas chaves!",
como que citando a morte de
Venceslau Pietro Pietra, o gigante colecionador de pedras,
que morre afogado num tacho
de macarronada, reclamando
que "Falta queijo!". São espelhamentos mais reveladores do
que simplesmente intrigantes.
Reveladores das semelhanças entre duas sociedades rasgadas pela opressão e pela burocratização, por um lado, e,
por outro, pelo talento de dois
autores que souberam utilizar
os recursos modernistas -com
as devidas diferenças- em nome de uma crítica social e política ácida e satírica.
Bulgákov nunca cedeu às facilidades que o regime de Stálin
proporcionava aos escritores
do realismo socialista, tendo
criado até hostilidade por
Maiakóvski, durante certo período, justamente por esta razão. Depois de considerável sucesso, suas peças, folhetins e
romances foram totalmente
censurados, e seu nome passou
a ser impronunciável entre os
artistas soviéticos. E são exatamente os "artistas" as personagens mais alvejadas desta comédia trágico-burlesca.
Artistas entre aspas porque é
difícil conciliar a ideia de arte à
burocracia estatal a que os escritores e atores tinham se submetido neste período da história soviética, em que tudo se dividia em sindicatos, comitês,
escalões, presidências e secretariados.
Já na extensa leitura biográfica de Bulgákov, feita por Homero Freitas de Andrade - "O
Diabo Solto em Moscou"-, diz
o autor: "Na obra-prima de Bulgákov, "O Mestre e a Margarida", através de uma análise corrosiva do "caldo" cultural do
NEP, ele trabalharia até a véspera da própria morte, criando
um imenso painel no qual são
satirizadas em compasso de alta magia literária as relações
entre o Estado soviético e a cultura que se formava".
Neste estudo, o autor também relata a inacreditável conversa telefônica entre o romancista e Stálin, no dia seguinte ao
suicídio de Maiakóvski, em que
o ditador concede finalmente
emprego redentor ao escritor.
Entre muitas interpretações,
é certamente Stálin este diabo
solto em Moscou, que pode tudo, hipnotiza a todos, mas que,
graças à insistência ética de alguns, não consegue destruir tudo. Como diz o diabo a um de
seus seguidores, numa frase
que se tornaria o estandarte
desta obra tão tumultuada, é
impossível que uma obra desapareça, pois: "Manuscritos não
ardem!".
O MESTRE E A MARGARIDA
Autor: Mikhail Bulgákov
Tradução: Zoia Prestes
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 59,90 (456 págs.)
Avaliação: ótimo
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