São Paulo, quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

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Crítica/"O Mestre e a Margarida"

Livro de Bulgákov guarda semelhanças com "Macunaíma"

Do mesmo período, obras mostram sociedades rasgadas pela opressão e autores modernistas de crítica social ácida

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Mário de Andrade escreveu "Macunaíma" ao longo de cinco dias, em 1927. O livro foi publicado em 1928. Mikhail Afanassievich Bulgákov escreveu "O Mestre e a Margarida" ao longo de 11 anos, de 1929 a 1940, em Moscou. Não haveria, portanto, como um autor ter lido o outro, a não ser que o russo lesse português, algo improvável. Mesmo assim -e mais ainda por causa disso- as semelhanças entre os dois romances são impressionantes.
"O Mestre e a Margarida", em nova tradução após mais de uma década, narra a aparição do diabo em Moscou, durante os piores anos do stalinismo.
É claro que o diabo e seu séquito são de longe mais malignos que nosso pobre Macunaíma, cujas maldades não passam de diatribes inofensivas. Mas a malandragem, o humor, o ritmo vertiginoso, em forma de mosaico (rapsódia, o caso do brasileiro), as alternâncias narrativas, o artista como um aproveitador da burocracia, a denúncia -através do mal- de males ainda maiores, como a hipocrisia social e o culto à aparência são semelhanças gritantes demais.
Para arrematar as coincidências, uma personagem do romance russo morre gritando: "As chaves! Minhas chaves!", como que citando a morte de Venceslau Pietro Pietra, o gigante colecionador de pedras, que morre afogado num tacho de macarronada, reclamando que "Falta queijo!". São espelhamentos mais reveladores do que simplesmente intrigantes. Reveladores das semelhanças entre duas sociedades rasgadas pela opressão e pela burocratização, por um lado, e, por outro, pelo talento de dois autores que souberam utilizar os recursos modernistas -com as devidas diferenças- em nome de uma crítica social e política ácida e satírica.
Bulgákov nunca cedeu às facilidades que o regime de Stálin proporcionava aos escritores do realismo socialista, tendo criado até hostilidade por Maiakóvski, durante certo período, justamente por esta razão. Depois de considerável sucesso, suas peças, folhetins e romances foram totalmente censurados, e seu nome passou a ser impronunciável entre os artistas soviéticos. E são exatamente os "artistas" as personagens mais alvejadas desta comédia trágico-burlesca.
Artistas entre aspas porque é difícil conciliar a ideia de arte à burocracia estatal a que os escritores e atores tinham se submetido neste período da história soviética, em que tudo se dividia em sindicatos, comitês, escalões, presidências e secretariados.
Já na extensa leitura biográfica de Bulgákov, feita por Homero Freitas de Andrade - "O Diabo Solto em Moscou"-, diz o autor: "Na obra-prima de Bulgákov, "O Mestre e a Margarida", através de uma análise corrosiva do "caldo" cultural do NEP, ele trabalharia até a véspera da própria morte, criando um imenso painel no qual são satirizadas em compasso de alta magia literária as relações entre o Estado soviético e a cultura que se formava".
Neste estudo, o autor também relata a inacreditável conversa telefônica entre o romancista e Stálin, no dia seguinte ao suicídio de Maiakóvski, em que o ditador concede finalmente emprego redentor ao escritor.
Entre muitas interpretações, é certamente Stálin este diabo solto em Moscou, que pode tudo, hipnotiza a todos, mas que, graças à insistência ética de alguns, não consegue destruir tudo. Como diz o diabo a um de seus seguidores, numa frase que se tornaria o estandarte desta obra tão tumultuada, é impossível que uma obra desapareça, pois: "Manuscritos não ardem!".


O MESTRE E A MARGARIDA

Autor: Mikhail Bulgákov
Tradução: Zoia Prestes
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 59,90 (456 págs.)
Avaliação: ótimo




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