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Livro de Burroughs explora estilo fino e humor grosso
Em "Correndo com Tesouras", autor lança um olhar impiedoso sobre a loucura da vida familiar, em um comovente memorial à esquisitice de seu passado
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
Alguns livros memorialísticos nos permitem
rir da desgraça alheia
sem culpa. É o caso de "Correndo com Tesouras", de Augusten
Burroughs. Ao lê-lo, a necessidade de conter a gargalhada
diante da queda do semelhante
se torna dispensável, quase supérflua.
Esse é o xis da questão: se podemos zombar às claras das
desventuras narradas pelo impúbere Augusten, qual pode ser
a graça? Assim, com o progressivo virar de páginas, as risadas
vão morrendo no canto da boca. Até ficarem amarelas.
Risos amarelos e faces enrubescidas, nada é capaz de refrear a desfaçatez do hipersensível Augusten frente à vida.
Filho de professor alcoólatra
com uma poeta terrível (das
que rimam "amor" com "dor"),
além de grandiloqüente e maluca, o garoto nada pôde fazer
para impedir os pais "de atirar
romances de John Updike na
cabeça um do outro".
Só para constar: os livros de
Updike não são nada magros,
embora seja improvável que resultem mais "pesados" do que
"Correndo com Tesouras".
Crescendo nos anos 70 e 80
em Massachusetts (suas memórias vão dos 9 aos 17 anos),
Augusten sobrevive ao fracasso
conjugal dos pais e ao comportamento normal do irmão distante, com ouvidos colados em
Barry Manilow e olhos no penteado de US$ 1 milhão de Lee
Majors.
Precoce em tudo, o menino
desenvolve deslocada compreensão estética do Cosmos e
sonha em trabalhar na indústria de cosméticos: quer ser cabeleireiro quando crescer. Augusten, enfim, anseia pelo que a
mãe também anseia (ela sonha
publicar na "New Yorker"): ele
quer brilhar.
Seus sonhos, porém, não vão
longe e terminam por esbarrar
na família do dr. Finch, o psiquiatra excêntrico da mãe. A
pedido dela, ele torna-se tutor
de Augusten e leva-o para viver
em sua casa, um labirinto vitoriano populoso demais para ceder espaço ao frescor (para não
dizer "frescura") do garoto.
Com o hábito de abrigar pacientes, o médico também hospeda uma velha com transtorno obsessivo-compulsivo e Neil, homossexual de 33 anos
que torna-se o primeiro namorado de Augusten, 13. Mais sobre a trama seria impossível dizer, para não roubar amarelo
aos sorrisos dos leitores.
Dono de estilo finérrimo e
humor grosso, Augusten Burroughs construiu um comovente memorial à esquisitice de
seu passado (e com sucesso: o
livro virou filme). A qualidade
superior dessa história, porém,
não foi apontada ainda (Augusten foi chamado pela crítica de
"um Huck para o nosso tempo",
em referência ao emblemático
personagem de Twain), e talvez
seja seu olhar impiedoso sobre
a loucura da vida familiar ligeiramente deslocado e inovador.
JOCA REINERS TERRON é autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra)
CORRENDO COM TESOURAS
Autor: Augusten Burroughs
Editora: Ediouro (lançamento: 28/2)
Quanto: R$ 34,90 (272 págs.)
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