São Paulo, quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

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Livro de Burroughs explora estilo fino e humor grosso

Em "Correndo com Tesouras", autor lança um olhar impiedoso sobre a loucura da vida familiar, em um comovente memorial à esquisitice de seu passado

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Alguns livros memorialísticos nos permitem rir da desgraça alheia sem culpa. É o caso de "Correndo com Tesouras", de Augusten Burroughs. Ao lê-lo, a necessidade de conter a gargalhada diante da queda do semelhante se torna dispensável, quase supérflua.
Esse é o xis da questão: se podemos zombar às claras das desventuras narradas pelo impúbere Augusten, qual pode ser a graça? Assim, com o progressivo virar de páginas, as risadas vão morrendo no canto da boca. Até ficarem amarelas. Risos amarelos e faces enrubescidas, nada é capaz de refrear a desfaçatez do hipersensível Augusten frente à vida.
Filho de professor alcoólatra com uma poeta terrível (das que rimam "amor" com "dor"), além de grandiloqüente e maluca, o garoto nada pôde fazer para impedir os pais "de atirar romances de John Updike na cabeça um do outro".
Só para constar: os livros de Updike não são nada magros, embora seja improvável que resultem mais "pesados" do que "Correndo com Tesouras".
Crescendo nos anos 70 e 80 em Massachusetts (suas memórias vão dos 9 aos 17 anos), Augusten sobrevive ao fracasso conjugal dos pais e ao comportamento normal do irmão distante, com ouvidos colados em Barry Manilow e olhos no penteado de US$ 1 milhão de Lee Majors.
Precoce em tudo, o menino desenvolve deslocada compreensão estética do Cosmos e sonha em trabalhar na indústria de cosméticos: quer ser cabeleireiro quando crescer. Augusten, enfim, anseia pelo que a mãe também anseia (ela sonha publicar na "New Yorker"): ele quer brilhar.
Seus sonhos, porém, não vão longe e terminam por esbarrar na família do dr. Finch, o psiquiatra excêntrico da mãe. A pedido dela, ele torna-se tutor de Augusten e leva-o para viver em sua casa, um labirinto vitoriano populoso demais para ceder espaço ao frescor (para não dizer "frescura") do garoto.
Com o hábito de abrigar pacientes, o médico também hospeda uma velha com transtorno obsessivo-compulsivo e Neil, homossexual de 33 anos que torna-se o primeiro namorado de Augusten, 13. Mais sobre a trama seria impossível dizer, para não roubar amarelo aos sorrisos dos leitores.
Dono de estilo finérrimo e humor grosso, Augusten Burroughs construiu um comovente memorial à esquisitice de seu passado (e com sucesso: o livro virou filme). A qualidade superior dessa história, porém, não foi apontada ainda (Augusten foi chamado pela crítica de "um Huck para o nosso tempo", em referência ao emblemático personagem de Twain), e talvez seja seu olhar impiedoso sobre a loucura da vida familiar ligeiramente deslocado e inovador.


JOCA REINERS TERRON é autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra)

CORRENDO COM TESOURAS    
Autor:
Augusten Burroughs
Editora: Ediouro (lançamento: 28/2)
Quanto: R$ 34,90 (272 págs.)


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