São Paulo, quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

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MARCELO COELHO

Mistério das tatuagens


Observo que a moda das tatuagens coincide com outro fenômeno, o virtual sumiço da acne

NÃO CONHEÇO muitos quarentões que usem piercing no nariz ou que tenham adotado o estilo moicano no corte de cabelo. Mas nesta época de verão se torna bastante visível, mesmo entre pessoas de idade mais avançada, o sucesso das tatuagens.
Sempre que vejo alguém tatuado, fico torcendo para que o enfeite não seja definitivo. Nos adolescentes, especialmente os homens, há casos de radicalismo assustador. Parece que estão usando camisa estampada, das que no meu tempo eram comuns entre os fãs de Roberto e de Erasmo.
Ao olhar com mais atenção, percebemos que a estampa tem motivos esotéricos, parecendo uma embalagem de incenso para meditação. É a Índia, o mundo hippie, o devaneio lisérgico que se inscreve diretamente sobre a pele.
Sinto uma aflição danada diante dessa eflorescência delirante. É como se esses jovens estivessem cobertos de fungos, de parasitas visuais, de uma colônia de invasores extraterrestres, provenientes de não sei que galáxia bidimensional.
A idéia dos fungos talvez não seja tão arbitrária. Observo que a moda das tatuagens coincide com outro fenômeno recente no campo da visualidade "teen", que é o virtual desaparecimento da acne.
Antigamente, era comum ver adolescentes cobertos de espinhas. Os tratamentos dermatológicos devem ter melhorado muito, pois o problema quase desapareceu de vista. O que antes era a face esburacada da Lua ou de um asteróide insignificante foi então substituído pela superfície nebulosa, multicolorida e movente de Júpiter ou de Saturno, e espalha-se por todo o corpo.
Numa interpretação psicologizante, estaríamos diante de duas formas distintas de lidar com a timidez. Sem dúvida, pode-se interpretar a acne como uma forma de esconder o próprio rosto.
Não nego que existam razões hormonais para as violentas alterações que sofre a pele na adolescência, mas entre a química dos hormônios e os constrangimentos sociais típicos da idade deve haver uma interação mútua, sendo difícil estabelecer a ordem de precedência causal desses fatores.
Pois bem, se a acne escondia o rosto, a tatuagem recobre o corpo, sem deixar ao mesmo tempo de pressupor sua exibição. Trata-se de uma particular mistura de exibicionismo e ocultamento, de ostentação e subterfúgio. O paradoxo das tatuagens talvez corresponda, desse ponto de vista, a uma coisa só: narcisismo.
É possível que, diante do espelho, o jovem tatuado se relacione consigo mesmo e com um "outro" bem variado: os tigres, sóis, arabescos e divindades que recobrem sua pele.
Nesse sentido, não estaríamos diante de um narcisismo puramente interior em que o sujeito apenas pensa em si mesmo, e não se liberta da própria imagem, mas de um narcisismo exteriorizado, que precisa de uma expressão gráfica, visual, como é típico, aliás, na cultura adolescente.
Mas também se pode pensar no oposto: é o olhar do outro, as fantasias do outro, que recobrem o corpo do sujeito, que se torna uma espécie de tela para a projeção de slides. A tatuagem seria um meio de incorporar na própria pele os sonhos que os outros projetam sobre nós.
Claro que a rebeldia e a identidade adolescentes estão em jogo nesse comportamento. Mas é como se os ideais hippies ganhassem na nova geração uma existência superficial, epidérmica; as agulhas do LSD foram substituídas pelas do mestre tatuador, produzindo seus delírios à flor da pele.
E os quarentões? Rabos de cavalo, vá lá. Mas tatuagens? Creio que se transformaram em substitutos imaginários para a plástica. Homens e mulheres já meio passados pensam adquirir um visual adolescente, sem passar pela caretice de uma cirurgia ou de um botox.
Tanto melhor, nessa perspectiva, se as tatuagens forem definitivas: o que se procura, sem dúvida, é a eterna juventude. Inútil alertar para a fragilidade, até que simpática, desse esforço de rejuvenescimento. Reproduzo, apenas, um caso que ouvi outro dia.
É o de uma moça solteira que, já faz bons anos, tatuou um coraçãozinho no ombro. Veio o casamento, veio a gravidez, vieram os filhos e os quilos. A epiderme distendeu-se. E o coraçãozinho assumiu uma forma indefinível, talvez de pulmão duplo, de fígado, de mapa da Austrália, de rondelli ao molho branco.
Não, não tenho dúvida. Plásticas e lipos ainda constituem a melhor solução.

coelhofsp@uol.com.br


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