|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
"Me Larga!" (e me abraça!)
As separações são decididas por dinâmica que pouco tem a ver com os defeitos do outro
ÀS VEZES , milagrosamente, um
psicanalista consegue transmitir os resultados de sua experiência clínica do jeito certo: sem
simplificar, mas sendo mais cuidadoso com o leitor leigo do que preocupado em impressionar a turma
dos colegas.
É o caso do livro de Marcel Rufo,
"Me Larga! Separar-se para Crescer", recentemente traduzido em
português pela Martins Fontes.
Rufo, 62, francês, terapeuta de
crianças e adolescentes, segue passo
a passo as peregrinações pelas quais
o indivíduo conquista sua autonomia, ou seja, o difícil caminho que leva da fusão inicial com a mãe à independência rebelde do adolescente.
Ao longo do percurso, ele apresenta inúmeras vinhetas clínicas: crianças agressivas, infelizes na escola,
com enuresia, pré-adolescentes
adotados ou que se imaginam sê-lo,
outros que fogem sem parar, jovens
que se drogam ou querem acabar
com sua vida, assim como pais que
largam os filhos cedo demais e outros que não os largam nunca.
Mas "Me Larga!" não é apenas um
livro para pais e filhos sobre as dores
do crescimento. A leitura é, para
qualquer um, uma ocasião imperdível para refletir um pouco sobre o
conflito (que nunca pára de nos assolar) entre nossos sonhos de sossego e nossos anseios de independência -conflito especialmente complicado, aliás, porque ele se repete
dentro de cada um dos campos que
nele se enfrentam: o amparo da dependência é também o porto seguro
que (mesmo remoto e fantasiado)
nos dá a força de continuar navegando para o largo, e não há liberdade
sem a nostalgia de um lar que nos
prenderia.
Como escreve Rufo: "Prender-se,
desprender-se, voltar, sair novamente, encontrar, abandonar... Toda a nossa vida segue esse movimento permanente". E relacionar-se significa encontrar um mágico equilíbrio nesse movimento: "Cada qual
precisa do outro para se construir e
se conquistar, para se tranqüilizar às
vezes, e para compartilhar momentos, idéias e desejos. O outro é precioso na medida em que representa
uma abertura para o mundo".
Ou seja: a solução do conflito entre dependência e autonomia nunca
é definitiva e é um paradoxo. Como é
possível encontrar amarras que nos
libertem?
Em suma, o conflito entre nossa
necessidade de amparo e apego e, do
outro lado, nossa sede de separação
e independência é central na constituição de nossa subjetividade e continua crucial durante a vida toda. Sugiro um exemplo.
Em geral, atribuímos tanto os
apaixonamentos quantos as separações de nossa vida amorosa ao outro,
que se revela, segundo os casos, sublime, incompetente ou sacana. Ou
então, às circunstâncias, facilitadoras ou infelizes. Mas talvez os percalços de nossa vida amorosa sejam
decididos por uma luta que se trava
dentro de nós e que pouco tem a ver
com as qualidades e os defeitos do
outro ou com as adversidades do
mundo.
Talvez a gente se apaixone e se separe sobretudo conforme o ritmo do
antigo e inesgotável conflito interno
entre nossas aspirações de navegador solitário (a imagem é de Rufo) e
nossa nostalgia de uma fusão na
qual, enfim, poderíamos descansar
de vez.
Prova disso?
Primeiro, obviamente, pense nas
separações, por assim dizer, "abstratas": aquelas que acontecem em razão de um surto irresistível de independência num dos dois ou em ambos e, inversamente, naquelas que
são maneiras de manter o conforto
de outro apego: "Gosto de você, mas
me largue, porque você me leva para
liberdade demais; prefiro ficar aqui
no quentinho".
Logo, lendo o livro de Rufo, é fácil
reencontrar as modalidades da ruptura amorosa na lista dos percalços
das separações pelas quais a criança
conquista sua autonomia: separar-se para não ser abandonado, separar-se para crescer e medir o alcance
de nossa liberdade, separar-se para
testar o outro, para verificar que ele
não nos deixará por isso, e por aí vai.
É como se os altos e baixos de nossa vida amorosa fossem, antes de
mais nada, a expressão de um conflito entre liberdade e apego que está
em nosso âmago e nunca se resolve.
À primeira vista, muitos acharão
essa idéia incongruente com sua experiência. Mas, antes de descartá-la,
façam o seguinte. Depois de uma separação, quando os "erros" e as "falhas" do outro se afastaram um pouco na memória e começam a parecer
irrelevantes, pergunte-se, por
exemplo: "Mas, afinal, por que nós
nos separamos?" Na maioria dos casos, a gente não sabe responder.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Tapa reencontra Jorge Andrade Índice
|