São Paulo, sábado, 21 de fevereiro de 1998

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Obras vêem delírio na Itália

MARCELO PEN
especial para a Folha

A literatura, como a vida, está cheia de estranhas coincidências. E a escolha da Itália de 1500 não é única das semelhanças que marcam dois livros lançados recentemente pela editora Rocco.
O primeiro, "Os Funerais de Sardinha", escrito pelo jornalista francês Pierre Combescot, colaborador do tablóide satírico Canard Enchaîné, é um catatau de mais de 500 páginas. Molda-se à feição de um tríptico, cujas três partes são apenas aparentemente estanques.
A Florença dos Medici é o pano de fundo da primeira parte, narrada por um deles, Lorenzino. Assassino por profissão e prostituto por vocação, o moço ama o primo Alexandre. Mata-o, com golpes de faca napolitana, quando este se recusa a se deitar com ele.
A segunda parte se passa em Roma, sob o signo do último imperador. Com viés simbólico, parece refletir de maneira distorcida a primeira. Há os dois irmãos incestuosos, a faca napolitana, certos manuscritos, mas, sobretudo, um sentido de finitude.
O estado de estagnação é maior na segunda parte. Não há mais império, os bárbaros fazem pouco da cidade combalida, a águia romana sofre de cólica. O plano do imperador de levar ao trono seus dois filhos postiços fora tolhido pela Igreja. O tempo está em suspenso.
Essa suspensão também se observa na terceira parte, que começa com o assassinato de um travesti à época do Conclave de onde sairia eleito o papa João Paulo 1º. Na trama tortuosa se misturam a Maçonaria, a Companhia de Jesus, a Opus Dei, as Brigadas Vermelhas, a alta sociedade e uma indústria de prostituição.
Nessa parte também descobrimos a chave que desvenda as outras duas e está ligada a um procedimento que poderíamos chamar de simulacro.
O que temos diante de nós não é a história, mas uma pseudo-história (de Florença, de Roma) engendrada por uma mente atormentada. Mas também poderia ser o contrário, e a mente atormentada ter sido fruto da história que criou. Esse plano especular só é possível porque a própria história não percorre um curso linear ou evolutivo. Dá-se por meio de uma eterna repetição de ações e fatos. Daí a sensação de estagnação, de finitude, de espera.
Há também uma espécie de fatalismo, como se tudo já houvesse ocorrido antes e se repetisse "ad infinitum". Como se fôssemos frutos da imaginação de um louco. Ou de um artista genial.
O que remete a "A Guerra das Imaginações", romance de estréia do roteirista e dramaturgo Doc Comparato. Fez seu dever de casa nesse livro, pesquisando longamente documentos históricos portugueses.
A trama se abre com o grito aterrorizado de Pio 3º. "Descobriram as Terras Incógnitas, além do Mar Tenebroso." Seria o paraíso terrestre? O dilema é terrível. Em última instância, suprimiria o poder do Vaticano. O papa decide enviar seu aliado, o monsenhor Filippo, às novas terras. Lá, o religioso acredita estar diante do Éden bíblico.
Para ele, nossos índios são anjos, arcanjos, serafins. Durante a viagem ocorre a troca de papas. Para evitar problemas, o sucessor Júlio 2º encomenda uma obra capaz de suplantar qualquer realidade paradisíaca. Convence Michelângelo a pintar a Capela Sistina.
O que o papa deseja é que a arte supere, substitua o real. No entanto, sabemos que esse real não passa de um simulacro inadvertido, fruto de uma imaginação delirante. E mais: essa imaginação para todos os efeitos torna-se realidade, e a realidade imaginação.
"O que impede que a mente de um artista assimile estados mentais de outros homens?", indaga um personagem. Mais uma vez nos vemos colocados em frente de uma realidade especular, de uma história em que tudo já existe e em que nada é descoberto.
O homem nada cria, mas copia, nada inventa, mas recorda-se, aprende e não descobre -simula, enfim. Se a simulação está na gênese do fenômeno artístico e também da realidade, a ficção é tão real quanto o fato. O que vivemos não é o que vivemos mas o simulacro. O que é pode ser o que não é.
Se há uma crítica a fazer ao romance de Doc, de resto muito saboroso e "page-turner", é o da escolha da imaginação. A sífilis no final do livro é levada a Roma por um garoto seviciado por índios brasileiros e lá se propaga numa orgia carnavalesca. Por que escolher, entre tantas imaginações, justamente aquela que transmite a lamentável visão de que a culpa dos males da civilização provém de terras primitivas e exóticas, ou então da força do sexo "descontrolado"? Imaginação triste essa, porém tão antiga e atual como a que atribui a culpa da Aids às saunas gays, e a causa do recente desequilíbrio econômico mundial a uma tal crise asiática.


Livro: Os Funerais de Sardinha Autor: Pierre Combescot Lançamento: Rocco Preço: RÏ 45 (508 páginas)

Livro: A Guerra das Imaginações Autor: Doc Comparato Lançamento: Rocco Preço: RÏ 24,50 (281 páginas)


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