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Obras vêem delírio na Itália
MARCELO PEN
especial para a Folha
A literatura, como a vida, está
cheia de estranhas coincidências.
E a escolha da Itália de 1500 não é
única das semelhanças que marcam dois livros lançados recentemente pela editora Rocco.
O primeiro, "Os Funerais de Sardinha", escrito pelo jornalista
francês Pierre Combescot, colaborador do tablóide satírico Canard
Enchaîné, é um catatau de mais de
500 páginas. Molda-se à feição de
um tríptico, cujas três partes são
apenas aparentemente estanques.
A Florença dos Medici é o pano
de fundo da primeira parte, narrada por um deles, Lorenzino. Assassino por profissão e prostituto
por vocação, o moço ama o primo
Alexandre. Mata-o, com golpes de
faca napolitana, quando este se recusa a se deitar com ele.
A segunda parte se passa em Roma, sob o signo do último imperador. Com viés simbólico, parece
refletir de maneira distorcida a
primeira. Há os dois irmãos incestuosos, a faca napolitana, certos
manuscritos, mas, sobretudo, um
sentido de finitude.
O estado de estagnação é maior
na segunda parte. Não há mais império, os bárbaros fazem pouco da
cidade combalida, a águia romana
sofre de cólica. O plano do imperador de levar ao trono seus dois
filhos postiços fora tolhido pela
Igreja. O tempo está em suspenso.
Essa suspensão também se observa na terceira parte, que começa com o assassinato de um travesti à época do Conclave de onde sairia eleito o papa João Paulo 1º. Na
trama tortuosa se misturam a Maçonaria, a Companhia de Jesus, a
Opus Dei, as Brigadas Vermelhas,
a alta sociedade e uma indústria de
prostituição.
Nessa parte também descobrimos a chave que desvenda as outras duas e está ligada a um procedimento que poderíamos chamar
de simulacro.
O que temos diante de nós não é
a história, mas uma pseudo-história (de Florença, de Roma) engendrada por uma mente atormentada. Mas também poderia ser o
contrário, e a mente atormentada
ter sido fruto da história que criou.
Esse plano especular só é possível
porque a própria história não percorre um curso linear ou evolutivo. Dá-se por meio de uma eterna
repetição de ações e fatos. Daí a
sensação de estagnação, de finitude, de espera.
Há também uma espécie de fatalismo, como se tudo já houvesse
ocorrido antes e se repetisse "ad
infinitum". Como se fôssemos
frutos da imaginação de um louco.
Ou de um artista genial.
O que remete a "A Guerra das
Imaginações", romance de estréia
do roteirista e dramaturgo Doc
Comparato. Fez seu dever de casa
nesse livro, pesquisando longamente documentos históricos
portugueses.
A trama se abre com o grito aterrorizado de Pio 3º. "Descobriram
as Terras Incógnitas, além do Mar
Tenebroso." Seria o paraíso terrestre? O dilema é terrível. Em última instância, suprimiria o poder
do Vaticano. O papa decide enviar
seu aliado, o monsenhor Filippo,
às novas terras. Lá, o religioso
acredita estar diante do Éden bíblico.
Para ele, nossos índios são anjos,
arcanjos, serafins. Durante a viagem ocorre a troca de papas. Para
evitar problemas, o sucessor Júlio
2º encomenda uma obra capaz de
suplantar qualquer realidade paradisíaca. Convence Michelângelo
a pintar a Capela Sistina.
O que o papa deseja é que a arte
supere, substitua o real. No entanto, sabemos que esse real não passa de um simulacro inadvertido,
fruto de uma imaginação delirante. E mais: essa imaginação para
todos os efeitos torna-se realidade, e a realidade imaginação.
"O que impede que a mente de
um artista assimile estados mentais de outros homens?", indaga
um personagem. Mais uma vez
nos vemos colocados em frente de
uma realidade especular, de uma
história em que tudo já existe e em
que nada é descoberto.
O homem nada cria, mas copia,
nada inventa, mas recorda-se,
aprende e não descobre -simula,
enfim. Se a simulação está na gênese do fenômeno artístico e também da realidade, a ficção é tão
real quanto o fato. O que vivemos
não é o que vivemos mas o simulacro. O que é pode ser o que não é.
Se há uma crítica a fazer ao romance de Doc, de resto muito saboroso e "page-turner", é o da escolha da imaginação. A sífilis no
final do livro é levada a Roma por
um garoto seviciado por índios
brasileiros e lá se propaga numa
orgia carnavalesca. Por que escolher, entre tantas imaginações,
justamente aquela que transmite a
lamentável visão de que a culpa
dos males da civilização provém
de terras primitivas e exóticas, ou
então da força do sexo "descontrolado"? Imaginação triste essa,
porém tão antiga e atual como a
que atribui a culpa da Aids às saunas gays, e a causa do recente desequilíbrio econômico mundial a
uma tal crise asiática.
Livro: Os Funerais de Sardinha
Autor: Pierre Combescot
Lançamento: Rocco
Preço: RÏ 45 (508 páginas)
Livro: A Guerra das Imaginações
Autor: Doc Comparato
Lançamento: Rocco
Preço: RÏ 24,50 (281 páginas)
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