São Paulo, sábado, 21 de fevereiro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Livro propõe enigma ficção-realidade

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação

"Armadilha para Lamartine" é dessas obras que viram lenda. Publicado pela primeira vez em 76 (editora Labor), teve poucos mas qualificados leitores, adquirindo de imediato o status de objeto "cult".
Compreende-se o fenômeno: em pleno regime militar, explorava não só o delicado e por si só metafórico tema "razão versus loucura", como também dava voz a sentimentos explicitamente antiditatoriais, antiamericanistas e antimilitaristas.
A estrutura do romance é simples. Compõe-se de um diário mantido em 54 e 55 pelo dr. Espártaco M., curador de menores lotado no Ministério Público, diário este precedido por uma narrativa breve na qual o filho do funcionário, Lamartine M., relata episódios de sua passagem por um sanatório. Vários desses episódios aparecem também no diário, mas com outro viés, assim como supostos trechos do diário são vivenciados pelo filho internado.
Tudo poderia ser ainda próximo do normal não fosse o fato de que Carlos Sussekind, o filho, "Lamartine", esteve realmente internado quando jovem e de que o pai, o jurista Carlos Sussekind de Mendonça (1899-1968), o tal "dr. Espártaco", manteve mesmo um diário, real, ao longo de toda a sua vida adulta. O eterno enigma ficção-realidade explode, portanto, aos olhos do leitor.
A família é de classe média. Vive num apartamento de três quartos no bairro do Leme, Rio de Janeiro. Em seu diário, Espártaco transcreve um dia-a-dia pacato, de constantes preocupações com dinheiro, que lhe era pouco; relata conversas com os parentes, apreensões com a saúde de cada membro da família, a começar por ele próprio; elabora inúmeras especulações político-ideológicas, além de transcrever documentos publicados por jornais ou revistas da época.
Daí emerge, para o leitor, um minucioso painel do Rio de Janeiro -capital da República- dos anos 50, nos terrenos público e privado. Um exemplo do "privado": "Gostei do terno que escolhi, de meia confecção, na José Silva. Um cinza azulado, para contrastar com o azul escuro do Vale alfaiate. Ficarei, assim, com nove roupas ao todo: um terno de linho cinza; um terno de linho branco...", assim por diante.
Outro exemplo, do "público":
"Os jornais trazem grandes novidades. Sente-se que já vai havendo reação ao clima de ultramandonismo que se está arrogando o Governo atual...".
O leito profundo do romance, porém, não está aí. Sutilmente, lentamente, o diário vai compondo uma narrativa, iniciada com a saída do filho da casa da família para viver uma "república" e cujo ápice é justamente a crise de que é acometido Lamartine, com a consequente internação no sanatório Três Cruzes (sanatório Botafogo, na realidade).
Mas o diário do dr. Espártaco é, também ele, uma espécie de simulação. Seu caráter obsessivo e detalhista, seu linguajar absolutamente impoluto, de pontuação neuroticamente perfeita, sua hipocondria, não só denotam uma mente voltada apenas para si mesma como também fracassam na tentativa de sufocar a emergência, nas entrelinhas, de uma verdadeira "vida dupla" de seu autor.
De tal modo que, ao final do livro, quando Lamartine deixa o sanatório, "curado", o leitor se vê em circunstâncias semelhantes às daquele famoso alienista criado por Machado de Assis, que simplesmente endoideceu na tentativa de estabelecer os limites da loucura e da razão.
É da relação pai e filho que o livro também trata, refletindo uma simbiose de perspectivas tão complexa e poderosa que acabou por levar Carlos Sussekind a publicar um outro romance, em 1994 -"Que Pensam Vocês Que Ele Fez?"-, no qual todos os personagens de "Armadilha..." -a começar pelo próprio diário do pai- ressurgem e se desenvolvem. Mas essa já é uma outra -e tão brilhante quanto- convidativa doideira.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.