|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Livro propõe enigma ficção-realidade
BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação
"Armadilha para Lamartine" é
dessas obras que viram lenda. Publicado pela primeira vez em 76
(editora Labor), teve poucos mas
qualificados leitores, adquirindo
de imediato o status de objeto
"cult".
Compreende-se o fenômeno: em
pleno regime militar, explorava
não só o delicado e por si só metafórico tema "razão versus loucura", como também dava voz a sentimentos explicitamente antiditatoriais, antiamericanistas e antimilitaristas.
A estrutura do romance é simples. Compõe-se de um diário
mantido em 54 e 55 pelo dr. Espártaco M., curador de menores lotado no Ministério Público, diário
este precedido por uma narrativa
breve na qual o filho do funcionário, Lamartine M., relata episódios
de sua passagem por um sanatório. Vários desses episódios aparecem também no diário, mas com
outro viés, assim como supostos
trechos do diário são vivenciados
pelo filho internado.
Tudo poderia ser ainda próximo
do normal não fosse o fato de que
Carlos Sussekind, o filho, "Lamartine", esteve realmente internado
quando jovem e de que o pai, o
jurista Carlos Sussekind de Mendonça (1899-1968), o tal "dr. Espártaco", manteve mesmo um
diário, real, ao longo de toda a sua
vida adulta. O eterno enigma ficção-realidade explode, portanto,
aos olhos do leitor.
A família é de classe média. Vive
num apartamento de três quartos
no bairro do Leme, Rio de Janeiro.
Em seu diário, Espártaco transcreve um dia-a-dia pacato, de constantes preocupações com dinheiro, que lhe era pouco; relata conversas com os parentes, apreensões com a saúde de cada membro
da família, a começar por ele próprio; elabora inúmeras especulações político-ideológicas, além de
transcrever documentos publicados por jornais ou revistas da época.
Daí emerge, para o leitor, um
minucioso painel do Rio de Janeiro -capital da República- dos
anos 50, nos terrenos público e
privado. Um exemplo do "privado": "Gostei do terno que escolhi,
de meia confecção, na José Silva.
Um cinza azulado, para contrastar
com o azul escuro do Vale alfaiate.
Ficarei, assim, com nove roupas
ao todo: um terno de linho cinza;
um terno de linho branco...", assim por diante.
Outro exemplo, do "público":
"Os jornais trazem grandes novidades. Sente-se que já vai havendo reação ao clima de ultramandonismo que se está arrogando o
Governo atual...".
O leito profundo do romance,
porém, não está aí. Sutilmente,
lentamente, o diário vai compondo uma narrativa, iniciada com a
saída do filho da casa da família
para viver uma "república" e cujo
ápice é justamente a crise de que é
acometido Lamartine, com a consequente internação no sanatório
Três Cruzes (sanatório Botafogo,
na realidade).
Mas o diário do dr. Espártaco é,
também ele, uma espécie de simulação. Seu caráter obsessivo e detalhista, seu linguajar absolutamente impoluto, de pontuação
neuroticamente perfeita, sua hipocondria, não só denotam uma
mente voltada apenas para si mesma como também fracassam na
tentativa de sufocar a emergência,
nas entrelinhas, de uma verdadeira "vida dupla" de seu autor.
De tal modo que, ao final do livro, quando Lamartine deixa o sanatório, "curado", o leitor se vê
em circunstâncias semelhantes às
daquele famoso alienista criado
por Machado de Assis, que simplesmente endoideceu na tentativa de estabelecer os limites da loucura e da razão.
É da relação pai e filho que o livro também trata, refletindo uma
simbiose de perspectivas tão complexa e poderosa que acabou por
levar Carlos Sussekind a publicar
um outro romance, em 1994
-"Que Pensam Vocês Que Ele
Fez?"-, no qual todos os personagens de "Armadilha..." -a começar pelo próprio diário do
pai- ressurgem e se desenvolvem. Mas essa já é uma outra -e
tão brilhante quanto- convidativa doideira.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|