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São Paulo, sexta-feira, 21 de março de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Nenhuma guerra dura seis dias

A paranóia dos 54% dos norte-americanos que estão apoiando o seu presidente na crise com o Iraque pagará, mais cedo ou mais tarde, um preço macabro com novos atentados não apenas no território dos Estados Unidos, mas em diversos países onde existam organizações ou instituições ligadas ao princípio hegemônico, defendido com unhas, dentes e poderoso arsenal nuclear pelo presidente George W. Bush.
Não importa que a atual guerra dure uma hora, um dia, uma semana, um mês, um ano, um século. Em 1956, uma guerra no Oriente Médio passou à história do século 20 como a "Guerra dos Seis Dias". Na verdade, durou mais, dura até hoje e parece que está longe de acabar. Somando-se as mortes e prejuízos daquele conflito vencido fulminantemente por Israel, constata-se que aquela guerra em si teve um custo insignificante se comparado ao preço que israelenses e palestinos continuam pagando por uma paz que não vem, por uma guerra que nunca é vencida por nenhum dos lados.
O exemplo me parece apropriado. Os Estados Unidos e sua poderosa aliada, a Inglaterra, e outros países menos votados, como a Espanha e a Austrália, estão desafiando a consciência universal, que condena a guerra preventiva, ao fazerem uso do argumento de que o meu vizinho pode enlouquecer e me atacar e, portanto, eu tenho o direito de atacá-lo e destruí-lo. O grego Esopo, o latino Fedro e o francês La Fontaine deixaram edificante fábula a esse respeito.
Chega a ser grotesca a demonização de Saddam promovida pelo presidente Bush. Afinal, o demônio da vez -e bota demônio nisso- seria Bin Laden. Na noite de 11 de setembro de 2001, ao irem dormir após as emoções daquele dia, os norte-americanos sabiam que as tragédias ocorridas em Nova York e Washington tinham como responsável principal o líder da Al Qaeda, que realmente passou recibo, logo depois, assumindo a autoria dos atentados.
Não se falou em Saddam nem no discutível arsenal de armas proibidas sob controle do ditador iraquiano. Os crimes de 11 de setembro, que inevitavelmente serão repetidos, mais cedo ou mais tarde, não uma, mas diversas vezes, não usaram nenhuma arma especial, saída misteriosamente das entranhas da tecnologia -que, aliás, não é o forte dos países árabes.
Na tragédia do 11 de setembro, foram usadas a astúcia, a criatividade e a surpresa próprias dos terroristas de todos os matizes. Foi com astúcia, criatividade e surpresa que os patriotas judeus explodiram o Hotel King David, em Jerusalém, onde se alojava o Estado-Maior dos ingleses, que ocupavam a Palestina. Durante anos, a foto 3x4 de Menahen Begin figurou num cartaz em que o Império Britânico oferecia uma recompensa pela captura, vivo ou morto, daquele que era então considerado o inimigo nš 1 da humanidade.
A disparidade tecnológica e militar entre os ingleses e os patriotas judeus era mais ou menos igual à que existe entre os norte-americanos e os iraquianos de hoje. Quem ganhou finalmente aquela guerra? Basta dizer que, anos depois, o antigo terrorista nš 1 da humanidade recebeu o Prêmio Nobel da Paz. O mundo dá voltas, tantas e tão violentas voltas que pode ser considerado, realmente, um mundo louco.
Nem o profeta mais desvairado poderá imaginar que um dia o ditador iraquiano vá receber um Nobel da Paz. Afinal, ele se revelou um tirano de seu próprio povo e, se o deixassem, invadiria (como de fato invadiu) outros países para submetê-los ao seu apetite de poder.
Nem por isso, com seu passado nada recomendável, a sua causa no atual contexto deixa de ser defensável. As acusações de que ele armazena armas proibidas é mais do que infantil. É hipócrita. Quase todos os povos, uns mais, outros menos, fazem o mesmo. Israel, Índia, Paquistão, Coréia do Norte, sabe-se lá se até as Ilhas Papuas, apesar de não contarem com os recursos tecnológicos equivalentes aos dos Estados Unidos, da Inglaterra, da França, da Rússia e da China, já estocaram suas bombinhas nucleares e poderão usá-las em caso de desespero.
Os especialistas em armamento da ONU não conseguiram provar a existência de bombas apocalípticas no Iraque. Uma inspeção igual em outros países (Alemanha, Canadá, África do Sul, Japão, Holanda, Turquia, a própria Itália e a própria Espanha, tradicionais aliados de Washington) poderia apresentar resultados bem mais inquietantes.
Sendo assim, a invasão do Iraque, após a cruzada política e diplomática do presidente Bush que grosseiramente dividiu o mundo, fornecerá a dois terços da humanidade um argumento a mais para o sentimento de desconfiança e de ódio contra os Estados Unidos.
No momento em que a maior máquina de guerra da história estiver destruindo Bagdá, que curiosamente ocupa aquela região entre os rios Tigre e Eufrates de onde viemos todos, um gato pingado, moreno, de olhos escuros e bigode farto, enrolado em alguns quilos de explosivos plásticos, poderá matar centenas de tranquilos norte-americanos que estarão tomando o metrô, de volta ao lar, doce lar.


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