|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Nenhuma guerra dura seis dias
A paranóia dos 54% dos
norte-americanos que estão
apoiando o seu presidente na crise com o Iraque pagará, mais cedo ou mais tarde, um preço macabro com novos atentados não
apenas no território dos Estados
Unidos, mas em diversos países
onde existam organizações ou
instituições ligadas ao princípio
hegemônico, defendido com
unhas, dentes e poderoso arsenal
nuclear pelo presidente George
W. Bush.
Não importa que a atual guerra
dure uma hora, um dia, uma semana, um mês, um ano, um século. Em 1956, uma guerra no
Oriente Médio passou à história
do século 20 como a "Guerra dos
Seis Dias". Na verdade, durou
mais, dura até hoje e parece que
está longe de acabar. Somando-se
as mortes e prejuízos daquele
conflito vencido fulminantemente por Israel, constata-se que
aquela guerra em si teve um custo
insignificante se comparado ao
preço que israelenses e palestinos
continuam pagando por uma paz
que não vem, por uma guerra que
nunca é vencida por nenhum dos
lados.
O exemplo me parece apropriado. Os Estados Unidos e sua poderosa aliada, a Inglaterra, e outros
países menos votados, como a Espanha e a Austrália, estão desafiando a consciência universal,
que condena a guerra preventiva,
ao fazerem uso do argumento de
que o meu vizinho pode enlouquecer e me atacar e, portanto, eu
tenho o direito de atacá-lo e destruí-lo. O grego Esopo, o latino Fedro e o francês La Fontaine deixaram edificante fábula a esse respeito.
Chega a ser grotesca a demonização de Saddam promovida pelo
presidente Bush. Afinal, o demônio da vez -e bota demônio nisso- seria Bin Laden. Na noite de
11 de setembro de 2001, ao irem
dormir após as emoções daquele
dia, os norte-americanos sabiam
que as tragédias ocorridas em Nova York e Washington tinham como responsável principal o líder
da Al Qaeda, que realmente passou recibo, logo depois, assumindo a autoria dos atentados.
Não se falou em Saddam nem
no discutível arsenal de armas
proibidas sob controle do ditador
iraquiano. Os crimes de 11 de setembro, que inevitavelmente serão repetidos, mais cedo ou mais
tarde, não uma, mas diversas vezes, não usaram nenhuma arma
especial, saída misteriosamente
das entranhas da tecnologia
-que, aliás, não é o forte dos países árabes.
Na tragédia do 11 de setembro,
foram usadas a astúcia, a criatividade e a surpresa próprias dos
terroristas de todos os matizes.
Foi com astúcia, criatividade e
surpresa que os patriotas judeus
explodiram o Hotel King David,
em Jerusalém, onde se alojava o
Estado-Maior dos ingleses, que
ocupavam a Palestina. Durante
anos, a foto 3x4 de Menahen Begin figurou num cartaz em que o
Império Britânico oferecia uma
recompensa pela captura, vivo ou
morto, daquele que era então
considerado o inimigo nš 1 da humanidade.
A disparidade tecnológica e militar entre os ingleses e os patriotas judeus era mais ou menos
igual à que existe entre os norte-americanos e os iraquianos de
hoje. Quem ganhou finalmente
aquela guerra? Basta dizer que,
anos depois, o antigo terrorista nš
1 da humanidade recebeu o Prêmio Nobel da Paz. O mundo dá
voltas, tantas e tão violentas voltas que pode ser considerado,
realmente, um mundo louco.
Nem o profeta mais desvairado
poderá imaginar que um dia o ditador iraquiano vá receber um
Nobel da Paz. Afinal, ele se revelou um tirano de seu próprio povo
e, se o deixassem, invadiria (como
de fato invadiu) outros países para submetê-los ao seu apetite de
poder.
Nem por isso, com seu passado
nada recomendável, a sua causa
no atual contexto deixa de ser defensável. As acusações de que ele
armazena armas proibidas é
mais do que infantil. É hipócrita.
Quase todos os povos, uns mais,
outros menos, fazem o mesmo. Israel, Índia, Paquistão, Coréia do
Norte, sabe-se lá se até as Ilhas
Papuas, apesar de não contarem
com os recursos tecnológicos equivalentes aos dos Estados Unidos,
da Inglaterra, da França, da Rússia e da China, já estocaram suas
bombinhas nucleares e poderão
usá-las em caso de desespero.
Os especialistas em armamento
da ONU não conseguiram provar
a existência de bombas apocalípticas no Iraque. Uma inspeção
igual em outros países (Alemanha, Canadá, África do Sul, Japão, Holanda, Turquia, a própria
Itália e a própria Espanha, tradicionais aliados de Washington)
poderia apresentar resultados
bem mais inquietantes.
Sendo assim, a invasão do Iraque, após a cruzada política e diplomática do presidente Bush que
grosseiramente dividiu o mundo,
fornecerá a dois terços da humanidade um argumento a mais para o sentimento de desconfiança e
de ódio contra os Estados Unidos.
No momento em que a maior
máquina de guerra da história estiver destruindo Bagdá, que curiosamente ocupa aquela região
entre os rios Tigre e Eufrates de
onde viemos todos, um gato pingado, moreno, de olhos escuros e
bigode farto, enrolado em alguns
quilos de explosivos plásticos, poderá matar centenas de tranquilos norte-americanos que estarão
tomando o metrô, de volta ao lar,
doce lar.
Texto Anterior: Música: Fatboy Slim escreve história da eletrônica Próximo Texto: Oscar 2003: Ativismo de olho no caixa Índice
|