São Paulo, quarta-feira, 21 de março de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

Superbabás em crise de identidade

Uma coisa estranha para mim é a facilidade com que essas crianças são expostas ao público

NÃO TENHO nervos para assistir a mais de dez minutos de "Supernanny", tais as misérias e horrores domésticos que o programa retrata na TV.
"Não pode ser assim", digo ao ver um menino de dois anos espatifando pratos de comida na cara da mãe. "Não pode ser assim", digo mais tarde, quando o pequeno vândalo aparece transformado num anjo mozartiano, ao término de uma breve estadia da "superbabá" naquela sucursal do inferno.
Devem ter pensado na fragilidade de pessoas como eu, porque um dos subprodutos da "Supernanny" brasileira, em cartaz no SBT, é uma revista, à venda nas bancas por R$ 6,99. O centavo de troco você guarda num cofrinho.
Posso então folhear "Supernanny", a revista, sem a trilha sonora dos berros e convulsões que acompanham o programa de TV. O ponto alto da edição é o resumo de um episódio transmitido pelo SBT.
Não é dos mais típicos, ao que parece, porque a intervenção da superbabá se deu numa família que não se caracterizava por extremos de permissividade.
No máximo, havia hábitos alimentares a corrigir no garoto maior e dificuldades da menorzinha em controlar o xixi. Uma coisa estranha, para mim, é a tranqüilidade com que essas crianças são expostas ao público: aparecem em diversas fotos, brincando em casa, ou quietas no colo da mãe, ainda que, felizmente, não no peniquinho.
O problema do xixi foi diagnosticado rapidamente. Uma vez descartada a hipótese de infecção urinária, concluiu-se que a menina queria atrair a atenção dos pais; "uma ajuda ligada à retomada da auto-estima foi fundamental", portanto, "para que entendesse que era amada e que não precisava fazer xixi nas calças".
Minhas dúvidas começam nesse ponto. Se o problema da criança era atrair a atenção, deve-se convir que ela obteve muito mais do que o carinho do pai e da mãe: contou com uma superbabá, uma equipe de cinegrafistas, milhões de espectadores e várias fotos na revista.
Talvez a necessidade de atrair a atenção atinja tanto pais quanto filhos, e a figura a quem mendigamos carinho seja a própria televisão, sempre cega e surda a nossos pequenos dramas domésticos. Faça a TV se interessar por você, abra sua casa e sua intimidade à visita, subitamente corpórea, daquela que sempre foi nossa "babá eletrônica", e tudo estará bem próximo de chegar a um final feliz.
O sistema "Supernanny" talvez revele outra ordem de contradições. As técnicas adotadas são de clara inspiração behaviorista: há prêmios para bom comportamento, um dadinho de espuma com desenhos de polegar para cima e para baixo, sinalizando os acertos e erros de cada criança, e um tapete onde o pequeno infrator deve ficar postado, tantos minutos quantos forem seus anos de idade. Não sei o que acontece, aliás, se a criança fizer xixi no tapete, depois de cinco ou seis minutos ali de pé.
Esse modelo pavloviano, que talvez seja mesmo o mais indicado em crianças pequenas, contrasta com outro tipo de pensamento pedagógico também presente na revista, segundo o qual birras e atitudes violentas são, apenas, "formas de expressão".
A pequena Luiza, ao ser contrariada, desferiu um tapa na cara do vovô.
Certamente o comportamento é inaceitável. O vovô é mais fraco, e, se se controlar, como é o esperado, suas coronárias talvez se ressintam do golpe.
"Pode ser", diz a revista, "que alguma tensão familiar esteja ocorrendo, e, sem conseguir expressar os seus sentimentos, a criança libere as emoções por meio da agressão física [...] Será que vocês não estão passando por alguma dificuldade, seja ela uma crise conjugal, um problema financeiro ou de saúde?".
Muito provável que sim. O fundamental, prossegue o texto, é conversar com a criança. "Não é preciso contar absolutamente tudo o que se passa com a família", mas a criança deve ser informada de que algo não vai bem e que ela não tem culpa disso.
Passamos, no fundo, da imagem de uma "caixa-preta", onde distúrbios de comportamento serão administrados com prêmios e castigos, para a idéia de uma mente infantil em busca de expressão, iluminável por meio do diálogo.
Que interpretação, que modelo escolher? Não digo que sejam incompatíveis. Mas o veneno da dúvida já se inoculou na cabeça dos pais; eles hesitam; claro que os filhos saberão se aproveitar disso também.


coelhofsp@uol.com.br

Texto Anterior: Crítica: "Colateral" oferta ao público uma viagem divertida
Próximo Texto: Capoeira é destaque em Curitiba
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.