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MARCELO COELHO
Superbabás em crise de identidade
Uma coisa estranha para mim é a facilidade com que essas crianças
são expostas ao público
NÃO TENHO nervos para assistir a mais de dez minutos de
"Supernanny", tais as misérias e horrores domésticos que o
programa retrata na TV.
"Não pode ser assim", digo ao ver
um menino de dois anos espatifando pratos de comida na cara da mãe.
"Não pode ser assim", digo mais tarde, quando o pequeno vândalo aparece transformado num anjo mozartiano, ao término de uma breve
estadia da "superbabá" naquela sucursal do inferno.
Devem ter pensado na fragilidade
de pessoas como eu, porque um dos
subprodutos da "Supernanny" brasileira, em cartaz no SBT, é uma revista, à venda nas bancas por R$
6,99. O centavo de troco você guarda
num cofrinho.
Posso então folhear "Supernanny", a revista, sem a trilha sonora dos berros e convulsões que
acompanham o programa de TV. O
ponto alto da edição é o resumo de
um episódio transmitido pelo SBT.
Não é dos mais típicos, ao que parece, porque a intervenção da superbabá se deu numa família que não se
caracterizava por extremos de permissividade.
No máximo, havia hábitos alimentares a corrigir no garoto maior e dificuldades da menorzinha em controlar o xixi. Uma coisa estranha, para mim, é a tranqüilidade com que
essas crianças são expostas ao público: aparecem em diversas fotos,
brincando em casa, ou quietas no
colo da mãe, ainda que, felizmente,
não no peniquinho.
O problema do xixi foi diagnosticado rapidamente. Uma vez descartada a hipótese de infecção urinária,
concluiu-se que a menina queria
atrair a atenção dos pais; "uma ajuda
ligada à retomada da auto-estima foi
fundamental", portanto, "para que
entendesse que era amada e que não
precisava fazer xixi nas calças".
Minhas dúvidas começam nesse
ponto. Se o problema da criança era
atrair a atenção, deve-se convir que
ela obteve muito mais do que o carinho do pai e da mãe: contou com
uma superbabá, uma equipe de cinegrafistas, milhões de espectadores e várias fotos na revista.
Talvez a necessidade de atrair a
atenção atinja tanto pais quanto filhos, e a figura a quem mendigamos
carinho seja a própria televisão,
sempre cega e surda a nossos pequenos dramas domésticos. Faça a TV
se interessar por você, abra sua casa
e sua intimidade à visita, subitamente corpórea, daquela que sempre foi
nossa "babá eletrônica", e tudo estará bem próximo de chegar a um final
feliz.
O sistema "Supernanny" talvez
revele outra ordem de contradições.
As técnicas adotadas são de clara
inspiração behaviorista: há prêmios
para bom comportamento, um dadinho de espuma com desenhos de
polegar para cima e para baixo, sinalizando os acertos e erros de cada
criança, e um tapete onde o pequeno
infrator deve ficar postado, tantos
minutos quantos forem seus anos
de idade. Não sei o que acontece,
aliás, se a criança fizer xixi no tapete,
depois de cinco ou seis minutos ali
de pé.
Esse modelo pavloviano, que talvez seja mesmo o mais indicado em
crianças pequenas, contrasta com
outro tipo de pensamento pedagógico também presente na revista, segundo o qual birras e atitudes violentas são, apenas, "formas de expressão".
A pequena Luiza, ao ser contrariada, desferiu um tapa na cara do vovô.
Certamente o comportamento é
inaceitável. O vovô é mais fraco, e, se
se controlar, como é o esperado,
suas coronárias talvez se ressintam
do golpe.
"Pode ser", diz a revista, "que alguma tensão familiar esteja ocorrendo, e, sem conseguir expressar os
seus sentimentos, a criança libere as
emoções por meio da agressão física
[...] Será que vocês não estão passando por alguma dificuldade, seja ela
uma crise conjugal, um problema financeiro ou de saúde?".
Muito provável que sim. O fundamental, prossegue o texto, é conversar com a criança. "Não é preciso
contar absolutamente tudo o que se
passa com a família", mas a criança
deve ser informada de que algo não
vai bem e que ela não tem culpa disso.
Passamos, no fundo, da imagem
de uma "caixa-preta", onde distúrbios de comportamento serão administrados com prêmios e castigos,
para a idéia de uma mente infantil
em busca de expressão, iluminável
por meio do diálogo.
Que interpretação, que modelo
escolher? Não digo que sejam incompatíveis. Mas o veneno da dúvida já se inoculou na cabeça dos pais;
eles hesitam; claro que os filhos saberão se aproveitar disso também.
coelhofsp@uol.com.br
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