São Paulo, sexta-feira, 21 de abril de 2000


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ARTIGO

O Pelado e o Vestido

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Pode ser que antes de 1500 Portugal estivesse mentalmente de posse do sentido do Atlântico, que foi o último mar conhecido da Europa.
Assim o Brasil nasce, intencional em cada plano, como em roteiro planejado de filme.
É incontestável a intencionalidade do Descobrimento, os dados estão aí documentados em muitas pesquisas idôneas dos historiadores daqui quanto do exterior.
A intenção da descoberta não exclui a surpresa, poetou em São Paulo Oswald de Andrade no roteiro modernista sobre as caravelas, admirado diante de 13 naus e 1.200 marujos entregues ao comando único do almirante Pedro Álvares Cabral.
O inexcedível compositor Lamartine Babo tratou "o seu Cabral" com carinho, como se fosse o verdadeiro padrinho do Rio de Janeiro.
O Carnaval, acontecimento da raça, quer dizer que a festa é o resultado do encontro de gente despida com os supervestidos colonizadores do século 16.
Às seis horas da tarde daquele abril de 1500 em Porto Seguro é o cenário dos pintores brasileiros de vanguarda, tão diferente do que medra com o vídeo pornô psicochique que sacaneia a nudez da indiada.
Esse bad movie metido a fino pega o nascimento do Brasil pelo ângulo do ressentimento psicológico: o desejo que o macho fosse pirata inglês ou holandês.
A colonização era inevitável, houvesse imprevisto ou improviso; todavia, além do ser pelado, não há nada.
Por isso, a antropologia "Tristes Tropiques", de Lévi-Strauss, peca por cegueira diante da natureza, conforme protestou o desbundado donatário Darcy Ribeiro, que foi até hoje o melhor antropólogo das gentes iletradas.
Referido-se aos argonautas lusos de 1500, Gilberto Freyre fala em cristãos orais na acepção da pré-Bíblia.
Quem o leu sabe que o xará de "Casa-Grande & Senzala" achava ecológico o mundo que o português criou aqui: colonização ecológica.
O cientista social Luís da Câmara Cascudo defenderá a tese irrefutável de que foi feliz a descoberta de 1500, o Brasil amanhecendo na história como consequência de um encontro amoroso.
Em termos de teoria do colonialismo, é perfeitamente válido afirmar em relação a Portugal que os juros já venceram.
Analisando do presente para o passado, a comemoração do Descobrimento deveria ser entoada com um réquiem ao perdido trabalho nacional acumulado pelos mortos e vivos desde 1500.
Mas, felizmente, existe o lenitivo de que não é preciso entender o Brasil para continuar sendo brasileiro.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (ed. Espaço e Tempo), entre outros


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