São Paulo, sábado, 21 de abril de 2001

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CRÍTICA

Literatura da autora é, ao mesmo tempo, feminina e feminina às avessas

BIA ABRAMO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Clara Pinto Correia é uma espécie de prodígio e não só porque tem credenciais impressionantes: bióloga e escritora, aos 41 anos tem mais de duas dezenas de livros publicados. Surpreendente, entretanto, é seu trânsito hábil entre registros literários distintos, não como exercício modernoso de pastiche, mas como meio de tirar o máximo de potência e expressividade de cada um.
Tome-se "Adeus, Princesa", publicado em 1987. O romance diz-se policial, desdobra-se como investigação sócio-antropológica sobre o Alentejo e acaba em algum lugar muito diferente. Como na reportagem que conduz a história, sobre a morte de um mecânico alemão e sua assassina confessa, Maria Vitória, de 18 anos.
Nos quatro dias que o atormentado estagiário de uma revista, Joaquim Peixoto, e seu companheiro, o cínico fotógrafo Sebastião Curto, passam na região de Beja, eles entram em contato com personagens de uma província aparentemente estagnada, mas que se revela convulsionada pelos descaminhos da Revolução dos Cravos de 74 ao mesmo tempo em que já mostra os sinais da desolação do início da globalização.
Nessa encruzilhada da história recente de Portugal, conflitam-se as gerações daqueles que acreditavam na revolução e sentiram-se traídos e a de seus filhos, entregues ao tédio e à sensação de não-futuro que assolou a década de 80.
A investigação policial que, no fundo, parece não importar, pois a assassina é inocentada no início, associada ao tom de crônica realista formam o cenário para que emerja a originalidade da escritora Clara Pinto Correia. Seja nesse falso policial, seja no extraordinário "Ponto Pé de Flor", a autora está empenhada em estabelecer uma literatura ao mesmo tempo feminina e feminina às avessas.
Às avessas porque sua escrita não se vale do que ficou mais ou menos convencionado e acabou vulgarizado como "literatura feminina": o escarafunchamento da vida interior das personagens, a sensibilidade como valor supremo, os arroubos do reprimido.
Suas incríveis mulheres não sofrem de excesso de vida interior; mas constróem-se num embate ativo com o mundo. Se Clara pertence a alguma linhagem da literatura de mulheres, digamos que está mais próxima de Jane Austen do que de Virginia Woolf.
Mas a escritora é uma mulher de seu tempo e, aí, algum tipo de feminismo e de discussão de gênero se impõe. Em seu caso, talvez poderia ser chamado de "feminismo de observação", ou seja, seu olhar registra os devastadores efeitos das guerras dos gêneros, passadas, presentes e até as que se anunciam, mas sem moralizá-los. O esforço da autora vai no sentido de descrever as cicatrizes que todas divisões entre mulheres e homens provocam dos dois lados.
Em "Adeus, Princesa", tais cicatrizes ameaçam reabrir, em forma de paixões doídas e de desespero juvenil (Maria Vitória é prima-irmã das "Virgens Suicidas", de Jeffrey Eugenides). Está uma nota abaixo de "Ponto Pé de Flor", mas é uma ótima introdução à vivacidade e à argúcia da autora.


Adeus, Princesa
    
Editora: Rocco
Quanto: R$ 25 (228 págs.)




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