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CRÍTICA
Literatura da autora é, ao mesmo tempo, feminina e feminina às avessas
BIA ABRAMO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Clara Pinto Correia é uma
espécie de prodígio e não só
porque tem credenciais impressionantes: bióloga e escritora, aos
41 anos tem mais de duas dezenas
de livros publicados. Surpreendente, entretanto, é seu trânsito
hábil entre registros literários distintos, não como exercício modernoso de pastiche, mas como
meio de tirar o máximo de potência e expressividade de cada um.
Tome-se "Adeus, Princesa", publicado em 1987. O romance diz-se policial, desdobra-se como investigação sócio-antropológica
sobre o Alentejo e acaba em algum lugar muito diferente. Como
na reportagem que conduz a história, sobre a morte de um mecânico alemão e sua assassina confessa, Maria Vitória, de 18 anos.
Nos quatro dias que o atormentado estagiário de uma revista,
Joaquim Peixoto, e seu companheiro, o cínico fotógrafo Sebastião Curto, passam na região de
Beja, eles entram em contato com
personagens de uma província
aparentemente estagnada, mas
que se revela convulsionada pelos
descaminhos da Revolução dos
Cravos de 74 ao mesmo tempo
em que já mostra os sinais da desolação do início da globalização.
Nessa encruzilhada da história
recente de Portugal, conflitam-se
as gerações daqueles que acreditavam na revolução e sentiram-se
traídos e a de seus filhos, entregues ao tédio e à sensação de não-futuro que assolou a década de 80.
A investigação policial que, no
fundo, parece não importar, pois
a assassina é inocentada no início,
associada ao tom de crônica realista formam o cenário para que
emerja a originalidade da escritora Clara Pinto Correia. Seja nesse
falso policial, seja no extraordinário "Ponto Pé de Flor", a autora
está empenhada em estabelecer
uma literatura ao mesmo tempo
feminina e feminina às avessas.
Às avessas porque sua escrita
não se vale do que ficou mais ou
menos convencionado e acabou
vulgarizado como "literatura feminina": o escarafunchamento da
vida interior das personagens, a
sensibilidade como valor supremo, os arroubos do reprimido.
Suas incríveis mulheres não sofrem de excesso de vida interior;
mas constróem-se num embate
ativo com o mundo. Se Clara pertence a alguma linhagem da literatura de mulheres, digamos que
está mais próxima de Jane Austen
do que de Virginia Woolf.
Mas a escritora é uma mulher
de seu tempo e, aí, algum tipo de
feminismo e de discussão de gênero se impõe. Em seu caso, talvez
poderia ser chamado de "feminismo de observação", ou seja, seu
olhar registra os devastadores
efeitos das guerras dos gêneros,
passadas, presentes e até as que se
anunciam, mas sem moralizá-los.
O esforço da autora vai no sentido
de descrever as cicatrizes que todas divisões entre mulheres e homens provocam dos dois lados.
Em "Adeus, Princesa", tais cicatrizes ameaçam reabrir, em forma
de paixões doídas e de desespero
juvenil (Maria Vitória é prima-irmã das "Virgens Suicidas", de Jeffrey Eugenides). Está uma nota
abaixo de "Ponto Pé de Flor", mas
é uma ótima introdução à vivacidade e à argúcia da autora.
Adeus, Princesa
Editora: Rocco
Quanto: R$ 25 (228 págs.)
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