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CONTARDO CALLIGARIS
A república dos doutores
Numa época, as universidades particulares procuravam ansiosamente por doutores.
O fato é que, para autorizar novos
cursos, o Ministério da Educação
exige que o corpo docente inclua
pesquisadores qualificados, ou seja, doutores.
Ultimamente, as universidades
particulares descobriram que o
salário dos doutores é caro. Na
medida do possível, querem substituí-los por mestres e graduados.
Esse cálculo poderia comprometer a qualidade do ensino. Mas
não é o caso de preocupar-se: os
donos das universidades particulares não acharão os mestres e os
simples graduados necessários
para efetuar a substituição, pois,
no Brasil do começo do século 21,
só há doutores. Prudente de Moraes pode festejar: a República
dos Bacharéis se pós-graduou.
Faça a prova: ligue para advogados, psicólogos, arquitetos e outros profissionais liberais. Ouvirá:
"A doutora está em consulta",
"Vou ver se o doutor pode atender". Ligue para uma agência de
publicidade, um escritório comercial ou uma empresa e tente falar
com um dirigente (engenheiro,
arquiteto, administradora etc.). É
a mesma coisa: "O doutor está em
reunião", "Quer deixar um recado para a doutora?".
Mas, trégua de brincadeiras.
Em geral, esses profissionais não
se apresentam como doutores
num encontro com membros de
sua classe social. Eles são doutores
para suas secretárias e, graças a
elas, para quem telefona.
Algumas semanas atrás, para
assinar um contrato, fui até um
elegante escritório comercial, na
área de São Paulo (ao redor da
avenida Berrini) que se apresenta
como cartão-postal da modernização. Anunciei ao porteiro que
eu devia encontrar o senhor E.,
que estava me esperando. O porteiro, modulando a voz de modo
a acentuar a correção de minhas
palavras, perguntou: "Você quer
ver o doutor E.? E você é o senhor...?". Ele parecia treinado para produzir uma tentativa de intimidação social. Não achei graça
e retruquei: "Ah, o senhor E. é
doutor? Ele é médico ou tem doutorado em alguma outra especialidade?". O porteiro ficou atônito:
como ele deveria reagir a essa resposta imprevista?
As regras do uso legítimo do título de doutor dizem que doutores são os que completam um
doutorado e, por consideração especial, os médicos. Não sei se o
porteiro conhecia essas regras. No
entanto, graças a uma sabedoria
vital em nosso mundo, ele sabia
certamente que o título de doutor
do senhor E. não designa uma excelência acadêmica, mas serve
para significar uma distância social.
No caso, não há diferença nenhuma entre ser doutor e ser
marquês de Carabás: ambos são
títulos cujo uso vale como um gesto de submissão, como uma genuflexão. Reconhecendo que o senhor E. pertence a outra casta, o
porteiro me convidava a dar prova da mesma deferência.
Ora, a modernidade triunfa
quando a diversidade das origens, das funções sociais e das
condições econômicas não altera
o fato de que somos todos essencialmente iguais.
Na adolescência, participei da
fundação de um pequeno círculo
liberal "extremista", em que a
gente praticava o costume jacobino de chamar os outros de "cidadão" ou "cidadã" (título que era
para nós uma honra suprema),
acompanhado da função de cada
um: cidadão professor, cidadã estudante, cidadão carpinteiro. Um
pouco mais tarde, sonhei com um
mundo em que nos chamaríamos
um ao outro de "companheiro"
ou "companheira".
Isso acontecia numa outra sociedade de doutores, a Itália dos
anos 60. A sociedade italiana acabava de se tornar republicana e
vivia um conflito agudo entre a
modernização acelerada, as desigualdades econômicas violentas e
a nostalgia das antigas hierarquias. Com isso, as diferenças sociais modernas (diferenças de formação e de função) eram extraviadas e usadas como indicadores
de privilégio e de casta. "Doutor",
um título que deveria assinalar a
competência específica de um cidadão, era usado para afirmar
que ele pertencia à tribo dos abastados.
Entre parênteses: a universidade italiana, cúmplice do atraso
nacional, chamava de "doutor"
qualquer graduado.
A alusão a uma educação superior, que é contida no título "doutor", serve também para justificar
o privilégio: se alguém é doutor,
"merece" ser rico. Com isso, a
classe média, sempre ameaçada
por seu retrocesso, pode acreditar
que seu privilégio não seja arbitrário e efêmero. Explica-se assim
o mistério das reuniões de condomínio em que todos os condôminos são doutores e doutoras.
Enfim, é provável que o uso de
"doutor" como índice e justificação do privilégio social seja um
sintoma constante em todas as
sociedades em que formas arcaicas de domínio desvirtuam as formas modernas da diferença social. "Doutor", nessas sociedades,
não é médico nem pós-graduado:
é quem tem cartão de crédito,
acesso à sala VIP do aeroporto e
carro importado.
Nota. A república dos doutores
é especialmente risível hoje,
quando a hierarquia social que
parece contar é aquela produzida
pela notoriedade. Nessa hierarquia, o que importa não são os títulos, mas os nomes próprios, à
condição que sejam reconhecíveis. Você acha que Giorgio Armani e Paulo Coelho querem ser
chamados de dr. Armani e dr.
Coelho?
@ - ccalligari@uol.com.br
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