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Siga o idiota
Adaptação "O Idiota", de Dostoiévski, por Cibele Forjaz candidata-se a grande acontecimento teatral do ano; leia resenha do crítico da Folha e reportagem sobre como público enfrenta maratona de três dias para ver o espetáculo todo
LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA
Romances famosos são
tentações que assombram o teatro. "O Idiota", encenação de Cibele Forjaz
de uma das obras mais populares de Dostoiévski, é a prova de
que a grande literatura pode gerar espetáculos inesquecíveis.
O coletivo envolvido no projeto optou por contar a saga do
príncipe Míchkin, "o homem
absolutamente belo", como
uma "novela teatral" em três
partes. As sessões se sustentam
por si, mas é recomendável assisti-las na sequência e deve-se
tomá-las como uma obra única.
Publicado originalmente na
forma de folhetim, "O Idiota"
guarda características formais
do gênero. A escritura é prolixa,
recheada de episódios laterais,
que colaboram na armação de
um tortuoso fio narrativo.
Para
cada momento crucial somam-se várias curvas protelatórias,
sem falar nas descrições minuciosas do psiquismo de personagens atormentados, ambas
difíceis de transpor para o jogo
presencial com a platéia.
Na adaptação de Aury Porto,
mentor do projeto e ator protagonista, o caudaloso romance
foi reduzido a doze cenas. Esta
síntese, que envolveu dois anos
de trabalho e dezenas de colaboradores, implicou na eliminação de muitos personagens e
na fusão em alguns deles de outros tantos. Se nuances preciosas da fábula desapareceram,
ganhou-se em fluência espetacular, com ênfase nos momentos agudos da trama.
A montagem explicita as características narrativas da cena
contemporânea, que tende a
expor-se como processo construtivo, muito mais do que se
disfarçar por trás da ação dramática. De fato, as dificuldades
de adequar aquela prosa literária à situação teatral são superadas pela linguagem cênica estar aqui emancipada das convenções do drama, e poder falar
por si, em seus próprios termos.
O conjunto da obra é extraordinário por diversas razões.
Primeiro pela circunstância espacial. A cenógrafa Laura Vinci
despe o galpão do Sesc Pompéia de arquibancadas e paredes e instaura, com contundência minimalista e incisões precisas, um ambiente propício a
deambulação do público.
A partir de nichos modulares e com
soluções próprias a cada sessão,
cria um campo de forças estético poderoso, que harmoniza as
diferenças estilísticas dos três
espetáculos.
Outra felicidade é o encontro
de atores e atrizes de uma mesma geração, egressos de diferentes companhias. Estão todos bem, mas, sobretudo, Aury
Porto, com seu Míchkin sereno
e patético, Sílvia Prado com sua
Lisavieta mercurial e benigna,
em seu melhor desempenho na
carreira, e Lúcia Romano com
uma Aglaia densa e sublime.
Freddy Allan está seguro como
o jovial Kólia e Vanderlei Bernardino convincente como o
intrigante e vil Lhêbediev.
Luah Guimarãez, como a pecadora santificada Nastássia Filípovna, e Sérgio Siviéro como
Ragôjan, o antagonista amoroso do príncipe, entregam-se à
passionalidade das personagens, e Luiz Mármora é virtuoso nas criações do milionário
Tôtski e do bonachão Ívolguin.
Sílvio Restiff arca com Gánia, o
personagem mais descaracterizado na adaptação.
Tudo isto articulado por Cibele Forjaz, ainda em diálogo
com Zé Celso, mas cada vez
mais senhora de uma poética
própria. Sem forçar a mão, ela
aproxima uma história da Rússia do século 19 do Brasil de hoje.
As cenas, delicadas ou tragicômicas, alcançam clima intimista mesmo em espaço devassado, pontuadas pela bela luz
de Alessandra Domingues e pela direção musical sutil de Otávio Ortega, solidários parceiros
da encenadora.
O teatro é arte efêmera, mas
"O Idiota" candidata-se a restar
na memória como exemplo de
um notável encontro do teatro
com a literatura.
O IDIOTA
Quando: ter. e sex., às 20h (1ª parte); qua., às 20h (hoje, exepcionalmente, às 19h), e sáb., às 19h (2ª
parte); qui., às 20h, e dom, às 19h
(3ª parte); até 9/5
Onde: Sesc Pompeia (r. Clelia, 93,
tel. 0/ xx/11/3871-7700)
Quanto: R$ 4 a R$ 16
Classificação: 14 anos
Avaliação: ótimo
www.folha.com.br/1010919
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