São Paulo, quarta-feira, 21 de abril de 2010

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Siga o idiota

Adaptação "O Idiota", de Dostoiévski, por Cibele Forjaz candidata-se a grande acontecimento teatral do ano; leia resenha do crítico da Folha e reportagem sobre como público enfrenta maratona de três dias para ver o espetáculo todo

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

Romances famosos são tentações que assombram o teatro. "O Idiota", encenação de Cibele Forjaz de uma das obras mais populares de Dostoiévski, é a prova de que a grande literatura pode gerar espetáculos inesquecíveis.
O coletivo envolvido no projeto optou por contar a saga do príncipe Míchkin, "o homem absolutamente belo", como uma "novela teatral" em três partes. As sessões se sustentam por si, mas é recomendável assisti-las na sequência e deve-se tomá-las como uma obra única.
Publicado originalmente na forma de folhetim, "O Idiota" guarda características formais do gênero. A escritura é prolixa, recheada de episódios laterais, que colaboram na armação de um tortuoso fio narrativo.
Para cada momento crucial somam-se várias curvas protelatórias, sem falar nas descrições minuciosas do psiquismo de personagens atormentados, ambas difíceis de transpor para o jogo presencial com a platéia.
Na adaptação de Aury Porto, mentor do projeto e ator protagonista, o caudaloso romance foi reduzido a doze cenas. Esta síntese, que envolveu dois anos de trabalho e dezenas de colaboradores, implicou na eliminação de muitos personagens e na fusão em alguns deles de outros tantos. Se nuances preciosas da fábula desapareceram, ganhou-se em fluência espetacular, com ênfase nos momentos agudos da trama.
A montagem explicita as características narrativas da cena contemporânea, que tende a expor-se como processo construtivo, muito mais do que se disfarçar por trás da ação dramática. De fato, as dificuldades de adequar aquela prosa literária à situação teatral são superadas pela linguagem cênica estar aqui emancipada das convenções do drama, e poder falar por si, em seus próprios termos.
O conjunto da obra é extraordinário por diversas razões. Primeiro pela circunstância espacial. A cenógrafa Laura Vinci despe o galpão do Sesc Pompéia de arquibancadas e paredes e instaura, com contundência minimalista e incisões precisas, um ambiente propício a deambulação do público.
A partir de nichos modulares e com soluções próprias a cada sessão, cria um campo de forças estético poderoso, que harmoniza as diferenças estilísticas dos três espetáculos.
Outra felicidade é o encontro de atores e atrizes de uma mesma geração, egressos de diferentes companhias. Estão todos bem, mas, sobretudo, Aury Porto, com seu Míchkin sereno e patético, Sílvia Prado com sua Lisavieta mercurial e benigna, em seu melhor desempenho na carreira, e Lúcia Romano com uma Aglaia densa e sublime.
Freddy Allan está seguro como o jovial Kólia e Vanderlei Bernardino convincente como o intrigante e vil Lhêbediev. Luah Guimarãez, como a pecadora santificada Nastássia Filípovna, e Sérgio Siviéro como Ragôjan, o antagonista amoroso do príncipe, entregam-se à passionalidade das personagens, e Luiz Mármora é virtuoso nas criações do milionário Tôtski e do bonachão Ívolguin.
Sílvio Restiff arca com Gánia, o personagem mais descaracterizado na adaptação. Tudo isto articulado por Cibele Forjaz, ainda em diálogo com Zé Celso, mas cada vez mais senhora de uma poética própria. Sem forçar a mão, ela aproxima uma história da Rússia do século 19 do Brasil de hoje.
As cenas, delicadas ou tragicômicas, alcançam clima intimista mesmo em espaço devassado, pontuadas pela bela luz de Alessandra Domingues e pela direção musical sutil de Otávio Ortega, solidários parceiros da encenadora.
O teatro é arte efêmera, mas "O Idiota" candidata-se a restar na memória como exemplo de um notável encontro do teatro com a literatura.


O IDIOTA

Quando: ter. e sex., às 20h (1ª parte); qua., às 20h (hoje, exepcionalmente, às 19h), e sáb., às 19h (2ª parte); qui., às 20h, e dom, às 19h (3ª parte); até 9/5
Onde: Sesc Pompeia (r. Clelia, 93, tel. 0/ xx/11/3871-7700)
Quanto: R$ 4 a R$ 16
Classificação: 14 anos
Avaliação: ótimo

www.folha.com.br/1010919




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