São Paulo, quarta-feira, 21 de abril de 2010

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MARCELO COELHO

Labirintos em miniatura


Ramón Gómez de la Serna oferece humor com inquietação surrealista e amigável


"QUEM PÕE a mão na orelha para ouvir melhor parece caçar a mosca do que se diz." "Os cães buscam ansiosamente o dono que tiveram em outra encarnação." "É difícil imaginar que uma caveira rindo seja uma caveira de mulher."
O autor dessas frases, Ramón Gómez de la Serna, nasceu em Madri, em 1888, e morreu em Buenos Aires em 1963. Admiradas por Borges, Cortázar, Buñuel e Octavio Paz, suas "greguerías", ou aforismos, não são desconhecidas dos leitores de dicionários humorísticos e antologias do gênero.
Com tradução de Wanderley Mendonça e prefácio de Adolfo Montejo Navas, "Greguerías" aparece no Brasil pela editora Amauta. Outras frases de Ramón Gomez de La Serna estão também no site www.erratica.com.br, traduzidas por Sérgio Alcides.
Quem gosta das sentenças e paradoxos poéticos de um Mário Quintana, por exemplo, vai encontrar nesse livro outros bons momentos de diversão e fantasia -mas com uma inquietação mais ácida e fúnebre.
Ninguém escreve milhares de aforismos sem cair, de vez em quando, na obviedade. "A lua dos arranha-céus não é a mesma lua dos horizontes", diz o autor. E mesmo sua originalidade traz, em algumas frases, não sei quê de literatice de discurso num banquete: "o beijo é um nada entre parênteses".
Há também frases que simplesmente "não funcionam": "acabo de saber o que é uma garrafa de champanhe: um canhão antiaéreo". A frase (sem data) é de molde a produzir incômodo em qualquer pessoa que a tenha lido depois do bombardeio de Guernica, no livro de um autor muito "apolítico" que entretanto prestou suas homenagens ao ditador Francisco Franco.
O mesmo tipo de violência, que não sei se não será muito espanhola, encontra-se em "a guilhotina foi o aparelho de barbear que a Revolução Francesa inventou". Mas é pelo exemplo das frases que "não funcionam" que se pode chegar, entretanto, a uma caracterização do que há de mais brilhante nas "greguerías" do autor.
Na garrafa de champanhe comparada a um canhão antiaéreo temos, evidentemente, uma metáfora. Mas metáfora "ruim" (pelo menos para o meu gosto), porque o reconhecimento de uma semelhança (forma, estampido, brusquidão) não combina suficientemente com a total gratuidade, o que há de inconcebível, de disparatado nas melhores frases do autor.
O jogo seria, portanto, entre uma semelhança imediata e o disparatado extremo, o incompatível por definição. Ramón Gomez de la Serna tem grandes achados poéticos, cujo único defeito é o de serem inutilizáveis num poema.
Ficaria quase grotesco se, no discurso contínuo dos versos, surgissem belezas extravagantes como esta: "a lua é a lavadeira da noite". Ou "nos galinheiros há neve de plumas". E, ainda, "tartarugas: sapatos do tempo".
A poesia está toda aí, mas não caberia junto de outros versos. Verdade que algumas metáforas de Ramón Gomez de la Serna parecem espelhar alguns poemas de García Lorca, como quando lemos que navalhas são "peixes cortados ao meio". E o simbolista Jules Laforgue, que sabia como inserir comparações humorísticas em suas "litanias", sem dúvida poderia ter assinado isto: "no polo Norte está o gorro de dormir da Terra".
Pegando o raciocínio pela outra ponta, as "greguerías" poderiam ser comparadas a alguma espécie de piada. Exemplo: "Quando a colherinha faz muito barulho ao cair, foi o bebê quem caiu".
Mas se o efeito da piada é o riso, na grande maioria das frases o que se dispara é algum tipo de iluminação. É o caso das "greguerías" mais intuitivas, que se podem reconhecer como verdadeiras mas resistem à explicação. Por exemplo: "o anfitrião parece ser um sujeito que toca um instrumento musical", ou: "ao ouvir a notícia o sofá desmaiou". E ainda: "o pavão é um mito aposentado".
Por vezes, a mera semelhança visual sugere outros significados: "a arquitetura árabe é o agigantamento do olho da fechadura". Pensamos num harém, tanto quanto nos arcos das janelas mouriscas. E também nas próprias "greguerías", que seriam como labirintos em miniatura. Cada vez que nos perdemos nesse livro, saímos com uma descoberta.

coelhofsp@uol.com.br


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