São Paulo, Quarta-feira, 21 de Abril de 1999
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MARCELO COELHO
O dedo em riste, mas com talento, de um crítico

A função de crítico cultural, que julgo exercer semanalmente neste espaço, tem vantagens e desvantagens. Menciono as desvantagens: o sujeito se torna arrogante, vaidoso, cria a seu respeito a ilusão de ser dono da verdade, e cria sobre o mundo moderno a idéia de que tudo é sinal de decadência e degeneração.
Para quem acha que o termo "degeneração" tem algum sentido, recomendo o artigo de Bernard Shaw, criticando o reacionarismo estético de um "crítico cultural" chamado Max Nordau. Nordau via no impressionismo e na música de Wagner sinais de completa doença na cultura do Ocidente. O artigo está no livro "O Teatro das Idéias", organizado e traduzido por Daniel Piza, e editado pela Companhia das Letras.
Mas "crítica cultural" tornou-se uma atividade suspeita, não pelos disparates de Nordau, e sim pelo que o filósofo Theodor Adorno escreveu em "Crítica Cultural e Sociedade", que o leitor brasileiro pode encontrar em "Prismas", editora Ática.
Em resumo, Adorno diz que o crítico cultural é suspeito à medida que ignora seu compromisso pessoal com a mídia, com o sistema que o sustenta.
Tenho em mãos um livro brilhante. Chama-se "Para Fazer Diferença"; foi escrito por um gaúcho, Luiz Augusto Fischer, e editado pela Artes e Ofícios.
Luiz Augusto Fischer se proclama (com razão) um "crítico cultural". Ganha uma espécie de conforto nessa atividade pelo fato de ser gaúcho. Este gauchismo lhe confere veracidade, anula qualquer suspeição adorniana.
Muito bem, esqueçamos Adorno. Ler Luís Augusto Fischer é uma maravilha. Ei-lo, deblaterando contra São Paulo:
São Paulo não tem "demonstrado nenhum apetite para assumir a dívida moral que tem com o resto do país, nem para pagar o preço pela concentração absurda de recursos materiais e humanos", diz Fischer.
O talento de Mario e Oswald de Andrade é posto em dúvida, com razão a meu ver. Esse gaúcho furioso diz verdades, e muitas. Celebro, acima de tudo, sua capacidade de síntese, sua economia na frase: sobre a psicanálise, Fischer diz apenas que "deu ao homem outro espelho que não o da imagem socialmente aceita".
Sobre Paulo Francis, leio um pensamento de rara profundidade: "Tenho a impressão de que Francis estava, intelectualmente, fora do diapasão da vida brasileira real". O texto continua. Não vou contar como. Mas Luís Augusto Fischer, neste livro, mostra como se pode ser inteligente a partir de um ponto de vista fraco -a província riograndense- e dá uma lição aos arrogantes paulistas, que se consideram donos da cultura (a mesma cultura que, segundo Adorno e Shaw, era vítima de um sequestro filisteu).
Fischer sofre dos defeitos que este articulista conhece bem: o dedo em riste, o pigarro, o arbítrio, a acusação. OK. Seu livro, a meu ver, é um fenômeno de inteligência e agudeza. Agudeza gaúcha, por certo. Mas ninguém é perfeito.


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