São Paulo, sábado, 21 de maio de 2005

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Manguel tira biblioteca da estante

Em "Os Livros e os Dias", escritor argentino comenta 12 clássicos favoritos relidos em 12 meses

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

O escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) nunca se importou muito com os escritores de sua própria época.
Durante toda a vida, cujos dias se passaram mergulhados em livros e em imagens literárias, o que mais lhe agradava era voltar aos clássicos, lembrando e tendo como referência os livros que lera na juventude. Quando, enfim, se aproximava da morte e estava quase cego, Borges tinha um secretário para ler para ele em voz alta essas amareladas páginas. Seu nome era Alberto Manguel.
Esse aprendiz cresceu e, a exemplo do mestre, colecionou seus próprios livros favoritos. Hoje um escritor célebre, Manguel também resolveu reler as obras que o tocaram quando era moço.
Assim surgiu "Os Livros e os Dias", que chega agora às livrarias, em que o argentino naturalizado canadense comenta 12 clássicos, relidos num espaço de 12 meses (entre 2002 e 2003), à luz dos fatos que preocupavam o mundo naquele momento.
Autor de um livro essencial para compreender a literatura, "Uma História da Leitura", e co-responsável pelo maravilhoso (com o perdão do trocadilho) "Dicionário dos Lugares Imaginários", o argentino Manguel, 57, fala hoje um espanhol de quem já não vive há tempos em sua terra natal.
Em entrevista à Folha, por telefone, da pequena aldeia na França onde vive e reorganiza sua biblioteca, Manguel criticou o enfraquecimento da literatura em língua inglesa e examinou o papel dos livros no mundo de hoje, além de comentar, com entusiasmo, a obra de Machado de Assis.
 

Folha - Jorge Luis Borges, de quem você foi secretário particular, não gostava de ler livros contemporâneos e sempre se referia aos que lera no passado. A idéia de voltar a livros que marcaram você quando jovem tem a ver com isso?
Alberto Manguel -
Sim. Quando somos adolescentes, gostamos da idéia de sermos os descobridores de pequenos universos. Mas, depois de uma certa idade, preferimos voltar aos lugares que já conhecemos, onde não precisamos nos apresentar. Gosto das velhas companhias e dos velhos livros.

Folha - Mas no capítulo dedicado a "A Ilha do Dr. Moreau", de H.G. Wells, fica-se com a impressão de que você se decepcionou, de que não sentiu o mesmo encanto de quando o leu pela primeira vez.
Manguel -
Não é que não tenha gostado de voltar a ele, mas, sim, que houve uma surpresa na primeira vez em que o li que nunca se repetirá. Por outro lado, reler Wells foi interessante para perceber até que ponto ele refletia uma condição geral humana. E esse é um aspecto que só pode nos chamar a atenção depois de uma quinta ou até de uma décima leitura do romance.

Folha - Acha que os livros hoje influenciam menos as pessoas do que no passado?
Manguel -
Estamos diante de uma situação bastante singular, sobretudo no que diz respeito à literatura no mundo anglo-saxão. Pela primeira vez a indústria editorial não está nas mãos de editores, mas de grandes grupos comerciais. E com isso há uma espécie de autocensura que se instalou entre os verdadeiros editores. Assim, cada vez menos são publicados livros com uma voz nova, com uma força nova.
Noventa e nove por cento do que se lança em inglês hoje são coisas que se parecem com livros, mas que não podemos definir como livros. Nem sequer como literatura. São imitações de modelos de best-sellers que se acomodam a uma visão do mundo americana mais ou menos neurótica, mais ou menos torturada, mas sem profundidade e, sobretudo, sem um estilo literário.
Em grande parte, isso se deve também ao fato de que não se traduz mais nada ao inglês. Por razões que são puramente comerciais está acontecendo um enfraquecimento do poder literário do inglês, e isso repercute em todas as outras literaturas.

Folha - Como você definiria o produto literário dessa indústria?
Manguel -
É uma literatura praticamente toda feita de "Paulos Coelhos". Uma literatura que não somente é vazia e complacente, mas que, além disso, rouba, como a de Paulo Coelho, que é um roubo descarado de outros autores.
É uma pena que isso esteja acontecendo, porque por muito tempo a literatura do mundo anglo-saxão foi um território cultural bastante importante.

Folha - Mas ao mesmo tempo existem autores como Ian McEwan que, de dentro do mundo da literatura de língua inglesa, fazem uma crítica a essa sociedade, como em seu novo romance, "Saturday".
Manguel -
Sim. É verdade que sempre, mesmo nos momentos mais espantosos de repressão, haverá alguém que seguirá escrevendo de maneira lúcida. E hoje a voz mais importante da língua inglesa é a de Ian McEwan.
Com "Saturday", ele não faz uma denúncia por meio de um panfleto, mas sim com um romance em que o personagem central não está seguro de suas posições políticas, de seu lugar no mundo, mas ainda assim tem que confrontá-lo. É brilhante.


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