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Manguel tira biblioteca da estante
Em "Os Livros e os Dias", escritor argentino comenta 12 clássicos favoritos relidos em 12 meses
SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN
O escritor argentino Jorge Luis
Borges (1899-1986) nunca se importou muito com os escritores
de sua própria época.
Durante toda a vida, cujos dias
se passaram mergulhados em livros e em imagens literárias, o que
mais lhe agradava era voltar aos
clássicos, lembrando e tendo como referência os livros que lera na
juventude. Quando, enfim, se
aproximava da morte e estava
quase cego, Borges tinha um secretário para ler para ele em voz
alta essas amareladas páginas. Seu
nome era Alberto Manguel.
Esse aprendiz cresceu e, a exemplo do mestre, colecionou seus
próprios livros favoritos. Hoje um
escritor célebre, Manguel também resolveu reler as obras que o
tocaram quando era moço.
Assim surgiu "Os Livros e os
Dias", que chega agora às livrarias, em que o argentino naturalizado canadense comenta 12 clássicos, relidos num espaço de 12
meses (entre 2002 e 2003), à luz
dos fatos que preocupavam o
mundo naquele momento.
Autor de um livro essencial para
compreender a literatura, "Uma
História da Leitura", e co-responsável pelo maravilhoso (com o
perdão do trocadilho) "Dicionário dos Lugares Imaginários", o
argentino Manguel, 57, fala hoje
um espanhol de quem já não vive
há tempos em sua terra natal.
Em entrevista à Folha, por telefone, da pequena aldeia na França
onde vive e reorganiza sua biblioteca, Manguel criticou o enfraquecimento da literatura em língua inglesa e examinou o papel
dos livros no mundo de hoje,
além de comentar, com entusiasmo, a obra de Machado de Assis.
Folha - Jorge Luis Borges, de
quem você foi secretário particular, não gostava de ler livros contemporâneos e sempre se referia
aos que lera no passado. A idéia de
voltar a livros que marcaram você
quando jovem tem a ver com isso?
Alberto Manguel - Sim. Quando
somos adolescentes, gostamos da
idéia de sermos os descobridores
de pequenos universos. Mas, depois de uma certa idade, preferimos voltar aos lugares que já conhecemos, onde não precisamos
nos apresentar. Gosto das velhas
companhias e dos velhos livros.
Folha - Mas no capítulo dedicado
a "A Ilha do Dr. Moreau", de H.G.
Wells, fica-se com a impressão de
que você se decepcionou, de que
não sentiu o mesmo encanto de
quando o leu pela primeira vez.
Manguel - Não é que não tenha
gostado de voltar a ele, mas, sim,
que houve uma surpresa na primeira vez em que o li que nunca
se repetirá. Por outro lado, reler
Wells foi interessante para perceber até que ponto ele refletia uma
condição geral humana. E esse é
um aspecto que só pode nos chamar a atenção depois de uma
quinta ou até de uma décima leitura do romance.
Folha - Acha que os livros hoje influenciam menos as pessoas do que
no passado?
Manguel - Estamos diante de
uma situação bastante singular,
sobretudo no que diz respeito à literatura no mundo anglo-saxão.
Pela primeira vez a indústria editorial não está nas mãos de editores, mas de grandes grupos comerciais. E com isso há uma espécie de autocensura que se instalou
entre os verdadeiros editores. Assim, cada vez menos são publicados livros com uma voz nova,
com uma força nova.
Noventa e nove por cento do
que se lança em inglês hoje são
coisas que se parecem com livros,
mas que não podemos definir como livros. Nem sequer como literatura. São imitações de modelos
de best-sellers que se acomodam
a uma visão do mundo americana
mais ou menos neurótica, mais
ou menos torturada, mas sem
profundidade e, sobretudo, sem
um estilo literário.
Em grande parte, isso se deve
também ao fato de que não se traduz mais nada ao inglês. Por razões que são puramente comerciais está acontecendo um enfraquecimento do poder literário do
inglês, e isso repercute em todas
as outras literaturas.
Folha - Como você definiria o produto literário dessa indústria?
Manguel - É uma literatura praticamente toda feita de "Paulos
Coelhos". Uma literatura que não
somente é vazia e complacente,
mas que, além disso, rouba, como
a de Paulo Coelho, que é um roubo descarado de outros autores.
É uma pena que isso esteja
acontecendo, porque por muito
tempo a literatura do mundo anglo-saxão foi um território cultural bastante importante.
Folha - Mas ao mesmo tempo
existem autores como Ian McEwan
que, de dentro do mundo da literatura de língua inglesa, fazem uma
crítica a essa sociedade, como em
seu novo romance, "Saturday".
Manguel - Sim. É verdade que
sempre, mesmo nos momentos
mais espantosos de repressão, haverá alguém que seguirá escrevendo de maneira lúcida. E hoje a
voz mais importante da língua inglesa é a de Ian McEwan.
Com "Saturday", ele não faz
uma denúncia por meio de um
panfleto, mas sim com um romance em que o personagem central não está seguro de suas posições políticas, de seu lugar no
mundo, mas ainda assim tem que
confrontá-lo. É brilhante.
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