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FERNANDO GABEIRA
Voar para onde?
A empresa de aviação lançou uma nova frase: você
nasceu para voar. Os funcionários agora desfilam com umas
longas capas vermelhas nos corredores abarrotados de malas e passageiros. Temo pelo seu conforto e
mobilidade.
Viajo quase sempre no mesmo
horário, no mesmo dia da semana. Trago uma pequena câmera
fotográfica compacta na esperança de que aconteça algo e possa
trabalhar um pouco como repórter amador. Se nasci para voar,
por que esta leve depressão cada
vez que subo as escadas e viajo
para a capital de meu país?
A leve pressão do peso da câmera no pescoço serve para me acalmar. Lembra-me a imensidão do
país, suas histórias e paisagens
que merecem uma vida inteira
para testemunhá-las. Lembra-me
também o equipamento mais pesado, que ficou em casa, pronto
para a conversão, isto é, a passagem do mundo da política, no
qual se diz como as coisas deveriam ser, para o da reportagem,
no qual se tenta explicar como
elas, de fato, são.
Se nasci para voar, deveria estar
um pouco mais feliz nas alturas,
mas o que vejo daqui de cima?
Uma crise varrendo a América
Latina -Bolívia, Peru, Nicarágua, Equador, Venezuela-, uma
corrente que se aproxima e nos
encontra completamente perdidos. Com raríssimas exceções, como a desse jurista de 90 anos, Goffredo da Silva Telles, poucos vêem
a tempestade se aproximar. Isso
porque o governo está enamorado de sua imagem, construída
nas boas agências de propaganda. Primeiro, foi a fome; agora, é
a igualdade racial; no ano que
vem, quem sabe, a paz entre os
homens.
As duas realidades cotidianas
escapam ao seu radar. Narciso
não é aquele que acha feio o que
não é espelho, é aquele que ignora
tudo o que não é sua imagem, que
vai jogando para baixo do tapete
todas as pequenas imperfeições.
Sinto-me pequeno demais para
deter um movimento como esse.
O que adiantaria dizer ao governo que não admita certo ministro, pois, conhecendo a política
brasileira, sei que a imprensa ficará nos seus calcanhares até o
último instante? O que adianta
recomendar a eles que, por favor,
não sangrem inutilmente. Sua lógica é continuar no poder e, por
isso, correm todos os riscos.
Se o governo está à beira do lago, pronto para mergulhar na sua
imagem refletida, o Congresso é
um verdadeiro esquadrão de camicases dirigindo seu airbus para
se chocar com a montanha.
Aumentos de verbas, gastos extraordinários, escândalos, parece
que seu radar está voltado para a
tempestade, enquanto discutem
suas ambições mesquinhas, suas
rusgas municipais, atentos apenas ao ruído de estômagos, ao
trabalho de suas glândulas, ao intercâmbio de ácidos e proteínas.
Severino, o presidente, não é
uma solução, e sim parte do problema. Tem sido leal comigo, que
não votei nele e o disse antes do
pleito, mas está em choque com a
opinião pública nacional e não
tem a mínima idéia das tarefas
diplomáticas de um presidente
num mundo que exige ação internacional dos parlamentos.
Ele pilota o airbus dos camicases cuidando do lanche e dos brindes. Voam alegremente para a
Disneylândia dos babydocs e não
há como detê-los, exceto talvez
com um pouco de fumaça e fogo,
como em Porto Velho, Rondônia.
Todos trabalham com a idéia
de que o Brasil suporta tudo. Uns
e outros podem protestar, mas as
eleições vão se suceder com a regularidade mecânica das estações
do ano. Os inconformados, portanto, devem partir.
O cenário será de eleições poderosas colocando em presença as
grandes agências, os grandes truques, os grandes equipamentos
-o Photoshop se encarrega de
mostrar as mudanças na sua expressão triunfante.
A tática da esquerda no governo, a mesma da Velha Senhora de
Dürrenmatt ("O mundo fez de
mim uma puta, farei do mundo
um bordel"), acabou ditando os
rumos. Uma grande massa de dinheiro estará em jogo, buscando
os que querem, de certa forma,
trocar seu voto por ela. Um voto
por uma boa imagem, um voto
por um bom show, um voto por
alguns tijolos, por uma bolsa de
estudo.
Talvez seja ingenuidade pensar
que a política se manteria fora
das trocas capitalistas, que envolvem até o amor e o casamento,
hoje feito com contratos milionários.
Se os excluídos e os insatisfeitos
vierem, gostaria de ficar um pouco, pelo menos até indicar alguns
caminhos, entre os escombros
desse universo que habitei. Se reduzirem sua insatisfação a algumas piadas de bar, alegorias carnavalescas e o ranger de dentes
dos que percebem, mas não podem tudo mudar, bem, nesse caso, será preciso voar mais alto.
De avião, barco, carroça percorrer o país, não mais essas tardes
vazias, curvas mil, documentar,
conversar, deixar em milhões de
pixels, palavras, fotos prateadas o
testemunho de um magnífico fracasso.
Depois de quase 50 anos de vida
pública, isso pode ser visto apenas
como uma forma de se aposentar.
Como um francês que leva sua
asa-delta para as montanhas dos
Pancas, no Espírito Santo, e voa
até Governador Valadares, em
Minas. Este nasceu para voar solitariamente. Quando os atores caminham celeremente para a tragédia, anunciar, contar histórias
e documentar é um vôo solidário,
uma suave dimensão da política,
sem lições de moral, "jeremiadas"; uma tentativa derradeira
de realizar o verso do velho
Drummond: "A vida apenas, sem
mistificação".
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