São Paulo, sábado, 21 de maio de 2005

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FERNANDO GABEIRA

Voar para onde?

A empresa de aviação lançou uma nova frase: você nasceu para voar. Os funcionários agora desfilam com umas longas capas vermelhas nos corredores abarrotados de malas e passageiros. Temo pelo seu conforto e mobilidade.
Viajo quase sempre no mesmo horário, no mesmo dia da semana. Trago uma pequena câmera fotográfica compacta na esperança de que aconteça algo e possa trabalhar um pouco como repórter amador. Se nasci para voar, por que esta leve depressão cada vez que subo as escadas e viajo para a capital de meu país?
A leve pressão do peso da câmera no pescoço serve para me acalmar. Lembra-me a imensidão do país, suas histórias e paisagens que merecem uma vida inteira para testemunhá-las. Lembra-me também o equipamento mais pesado, que ficou em casa, pronto para a conversão, isto é, a passagem do mundo da política, no qual se diz como as coisas deveriam ser, para o da reportagem, no qual se tenta explicar como elas, de fato, são.
Se nasci para voar, deveria estar um pouco mais feliz nas alturas, mas o que vejo daqui de cima? Uma crise varrendo a América Latina -Bolívia, Peru, Nicarágua, Equador, Venezuela-, uma corrente que se aproxima e nos encontra completamente perdidos. Com raríssimas exceções, como a desse jurista de 90 anos, Goffredo da Silva Telles, poucos vêem a tempestade se aproximar. Isso porque o governo está enamorado de sua imagem, construída nas boas agências de propaganda. Primeiro, foi a fome; agora, é a igualdade racial; no ano que vem, quem sabe, a paz entre os homens.
As duas realidades cotidianas escapam ao seu radar. Narciso não é aquele que acha feio o que não é espelho, é aquele que ignora tudo o que não é sua imagem, que vai jogando para baixo do tapete todas as pequenas imperfeições.
Sinto-me pequeno demais para deter um movimento como esse. O que adiantaria dizer ao governo que não admita certo ministro, pois, conhecendo a política brasileira, sei que a imprensa ficará nos seus calcanhares até o último instante? O que adianta recomendar a eles que, por favor, não sangrem inutilmente. Sua lógica é continuar no poder e, por isso, correm todos os riscos.
Se o governo está à beira do lago, pronto para mergulhar na sua imagem refletida, o Congresso é um verdadeiro esquadrão de camicases dirigindo seu airbus para se chocar com a montanha.
Aumentos de verbas, gastos extraordinários, escândalos, parece que seu radar está voltado para a tempestade, enquanto discutem suas ambições mesquinhas, suas rusgas municipais, atentos apenas ao ruído de estômagos, ao trabalho de suas glândulas, ao intercâmbio de ácidos e proteínas.
Severino, o presidente, não é uma solução, e sim parte do problema. Tem sido leal comigo, que não votei nele e o disse antes do pleito, mas está em choque com a opinião pública nacional e não tem a mínima idéia das tarefas diplomáticas de um presidente num mundo que exige ação internacional dos parlamentos.
Ele pilota o airbus dos camicases cuidando do lanche e dos brindes. Voam alegremente para a Disneylândia dos babydocs e não há como detê-los, exceto talvez com um pouco de fumaça e fogo, como em Porto Velho, Rondônia.
Todos trabalham com a idéia de que o Brasil suporta tudo. Uns e outros podem protestar, mas as eleições vão se suceder com a regularidade mecânica das estações do ano. Os inconformados, portanto, devem partir.
O cenário será de eleições poderosas colocando em presença as grandes agências, os grandes truques, os grandes equipamentos -o Photoshop se encarrega de mostrar as mudanças na sua expressão triunfante.
A tática da esquerda no governo, a mesma da Velha Senhora de Dürrenmatt ("O mundo fez de mim uma puta, farei do mundo um bordel"), acabou ditando os rumos. Uma grande massa de dinheiro estará em jogo, buscando os que querem, de certa forma, trocar seu voto por ela. Um voto por uma boa imagem, um voto por um bom show, um voto por alguns tijolos, por uma bolsa de estudo.
Talvez seja ingenuidade pensar que a política se manteria fora das trocas capitalistas, que envolvem até o amor e o casamento, hoje feito com contratos milionários.
Se os excluídos e os insatisfeitos vierem, gostaria de ficar um pouco, pelo menos até indicar alguns caminhos, entre os escombros desse universo que habitei. Se reduzirem sua insatisfação a algumas piadas de bar, alegorias carnavalescas e o ranger de dentes dos que percebem, mas não podem tudo mudar, bem, nesse caso, será preciso voar mais alto.
De avião, barco, carroça percorrer o país, não mais essas tardes vazias, curvas mil, documentar, conversar, deixar em milhões de pixels, palavras, fotos prateadas o testemunho de um magnífico fracasso.
Depois de quase 50 anos de vida pública, isso pode ser visto apenas como uma forma de se aposentar. Como um francês que leva sua asa-delta para as montanhas dos Pancas, no Espírito Santo, e voa até Governador Valadares, em Minas. Este nasceu para voar solitariamente. Quando os atores caminham celeremente para a tragédia, anunciar, contar histórias e documentar é um vôo solidário, uma suave dimensão da política, sem lições de moral, "jeremiadas"; uma tentativa derradeira de realizar o verso do velho Drummond: "A vida apenas, sem mistificação".


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