São Paulo, segunda-feira, 21 de maio de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

A pena e a espada


Modelo do escritor símbolo da resistência não tem mais lugar no mundo contemporâneo

HAVIA PAÍSES onde ser escritor envolvia mais do que publicar e ser lido. Em tais lugares, os autores consideravam-se e eram não raro considerados a consciência da nação ou a voz do povo, os portadores dos valores tradicionais ou o símbolo da resistência. Eles eram, enfim, figuras sobre-humanas, heróis da comunidade.
Uma frase atribuída a Charles de Gaulle ilustra bem esse estatuto. Quando, durante os distúrbios estudantis de 1968, Jean Paul Sartre desceu às ruas da capital francesa para se unir aos jovens, o velho soldado orientou seus policiais a não o perturbarem, dizendo que "não se prende Voltaire". Talvez o militar estivesse apenas preocupado com as repercussões negativas, mas tampouco é improvável que respeitasse a profissão das letras e o renome que esta emprestou à França.
Convém, afinal, lembrar que foi nesse país que, durante as últimas gerações do antigo regime, os escritores conquistaram um novo papel que lhes concedia prestígio social e influência política. Antes disso, um escritor era simplesmente um escritor, alguém que entretinha e, às vezes, instruía o público leitor, um profissional em nada diferente de um compositor como Mozart, que, segundo a lenda, comia com os serviçais na cozinha dos príncipes Esterházy ou de um Casanova que, conforme foi retratado por Fellini, chegara à velhice obrigado a reclamar de seu macarrão em alguma pequena corte européia.
Que, no final do século 19, durante o "caso Dreyfus", cujo desenrolar envenenou todas as dimensões da vida pública francesa, um romancista como Zola pudesse se dirigir diretamente ao presidente do país e questionar-lhe as decisões no seu célebre "J'Accuse" (Eu Acuso) prova que, se nada, o papel do escritor tornou-se ainda mais central após a revolução de 1789. E resistiu relativamente intacto até a transição da quarta para a quinta república, na qual um dos principais conselheiros e ministros de de Gaulle era André Malraux. Os comunistas, influentíssimos então, podiam discordar em tudo do governo, mas eles também cuidavam de recrutar suas próprias celebridades literárias.
Se foi na França que essa história começou, ela continuou, de acordo com padrões diferentes, em grande parte da Europa e das Américas (em particular a hispânica). Na metade centro-oriental do continente, a conversão dos escritores em porta-vozes da nacionalidade se deveu, na virada dos séculos 18/19, ao romantismo. Sob influência sobretudo germânica, povos como os poloneses, tchecos, húngaros, sérvios etc., enredados então no âmbito de impérios multinacionais, passaram a equacionar seu desejo de independência com a afirmação da singularidade irredutível de sua história e de seu caráter nacional.
Se, digamos, os tchecos eram essencialmente distintos em sua língua, cultura, tradições, tanto dos vizinhos como dos austríacos que os dominavam, decorria daí que tinham um direito intrínseco a seu país soberano.
E quem melhor para destacar a singularidade em questão do que autores patrióticos, os poetas em especial, que, dependentes da língua local, faziam o possível para, por um lado, por meio da exploração do folclore, enraizá-la na memória popular e, por outro, transformá-la em instrumento digno da alta cultura? Foi assim que, na região, os bardos românticos se transformaram em sumos intérpretes da alma do povo e em profetas da independência.
Por meio de sucessivas reencarnações tal papel perdurou ali até tempos recentes, pois não foi de modo algum secundário o que os escritores fizeram para se contrapor, primeiro, à hegemonia alemã e, logo depois, enquanto dissidentes, à russo-soviética. Nada o demonstra melhor do que a quantidade de autores executados ou encarcerados.
O caso russo, embora aparentemente distinto, reúne elementos seja do francês, seja do europeu oriental. Sendo a Rússia mesma um império, não havia ocupante estrangeiro a combater, nem hegemonia cultural à qual se contrapor. O peso do regime tsarista, porém, bem como o de seu sucessor stalinista, e a distância que ambos mantinham em relação ao grosso da população permitiram aos escritores, que amalgamaram liberalismo ocidental e nacionalismo étnico, tratar o governo como algo externo, alheio à verdadeira Rússia representada por seu povo.
Se o modelo do escritor tribuno não tem mais lugar no mundo contemporâneo, a memória de dois séculos, quando a pena duelava com a espada, continua influente. Embora de útil não renda nada, sua influência ainda leva literatos a namorarem idéias e ideologias que lhes prometem um papel mais nobre que o do cidadão comum.


Texto Anterior: HQs trazem Alan Moore e Neil Gaiman
Próximo Texto: Cinema: Machalski fala sobre escrita cinematográfica
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.