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NELSON ASCHER
A pena e a espada
Modelo do escritor símbolo da resistência não tem mais lugar no mundo contemporâneo
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HAVIA PAÍSES onde ser escritor
envolvia mais do que publicar e ser lido. Em tais lugares, os autores consideravam-se e
eram não raro considerados a consciência da nação ou a voz do povo, os
portadores dos valores tradicionais
ou o símbolo da resistência. Eles
eram, enfim, figuras sobre-humanas, heróis da comunidade.
Uma frase atribuída a Charles de
Gaulle ilustra bem esse estatuto.
Quando, durante os distúrbios estudantis de 1968, Jean Paul Sartre desceu às ruas da capital francesa para
se unir aos jovens, o velho soldado
orientou seus policiais a não o perturbarem, dizendo que "não se
prende Voltaire". Talvez o militar
estivesse apenas preocupado com as
repercussões negativas, mas tampouco é improvável que respeitasse
a profissão das letras e o renome que
esta emprestou à França.
Convém, afinal, lembrar que foi
nesse país que, durante as últimas
gerações do antigo regime, os escritores conquistaram um novo papel
que lhes concedia prestígio social e
influência política. Antes disso, um
escritor era simplesmente um escritor, alguém que entretinha e, às vezes, instruía o público leitor, um
profissional em nada diferente de
um compositor como Mozart, que,
segundo a lenda, comia com os serviçais na cozinha dos príncipes Esterházy ou de um Casanova que,
conforme foi retratado por Fellini,
chegara à velhice obrigado a reclamar de seu macarrão em alguma pequena corte européia.
Que, no final do século 19, durante
o "caso Dreyfus", cujo desenrolar
envenenou todas as dimensões da
vida pública francesa, um romancista como Zola pudesse se dirigir diretamente ao presidente do país e
questionar-lhe as decisões no seu
célebre "J'Accuse" (Eu Acuso) prova
que, se nada, o papel do escritor tornou-se ainda mais central após a revolução de 1789. E resistiu relativamente intacto até a transição da
quarta para a quinta república, na
qual um dos principais conselheiros
e ministros de de Gaulle era André
Malraux. Os comunistas, influentíssimos então, podiam discordar em
tudo do governo, mas eles também
cuidavam de recrutar suas próprias
celebridades literárias.
Se foi na França que essa história
começou, ela continuou, de acordo
com padrões diferentes, em grande
parte da Europa e das Américas (em
particular a hispânica). Na metade
centro-oriental do continente, a
conversão dos escritores em porta-vozes da nacionalidade se deveu, na
virada dos séculos 18/19, ao romantismo. Sob influência sobretudo germânica, povos como os poloneses,
tchecos, húngaros, sérvios etc.,
enredados então no âmbito de impérios multinacionais, passaram a
equacionar seu desejo de independência com a afirmação da singularidade irredutível de sua história e
de seu caráter nacional.
Se, digamos, os tchecos eram essencialmente distintos em sua língua, cultura, tradições, tanto dos vizinhos como dos austríacos que os
dominavam, decorria daí que tinham um direito intrínseco a seu
país soberano.
E quem melhor para destacar a
singularidade em questão do que
autores patrióticos, os poetas em especial, que, dependentes da língua
local, faziam o possível para, por um
lado, por meio da exploração do folclore, enraizá-la na memória popular e, por outro, transformá-la em
instrumento digno da alta cultura?
Foi assim que, na região, os bardos
românticos se transformaram em
sumos intérpretes da alma do povo e
em profetas da independência.
Por meio de sucessivas reencarnações tal papel perdurou ali até tempos recentes, pois não foi de modo
algum secundário o que os escritores fizeram para se contrapor, primeiro, à hegemonia alemã e, logo
depois, enquanto dissidentes, à russo-soviética. Nada o demonstra melhor do que a quantidade de autores
executados ou encarcerados.
O caso russo, embora aparentemente distinto, reúne elementos seja do francês, seja do europeu oriental. Sendo a Rússia mesma um império, não havia ocupante estrangeiro
a combater, nem hegemonia cultural à qual se contrapor. O peso do regime tsarista, porém, bem como o de
seu sucessor stalinista, e a distância
que ambos mantinham em relação
ao grosso da população permitiram
aos escritores, que amalgamaram liberalismo ocidental e nacionalismo
étnico, tratar o governo como algo
externo, alheio à verdadeira Rússia
representada por seu povo.
Se o modelo do escritor tribuno
não tem mais lugar no mundo contemporâneo, a memória de dois séculos, quando a pena duelava com a
espada, continua influente. Embora
de útil não renda nada, sua influência ainda leva literatos a namorarem
idéias e ideologias que lhes prometem um papel mais nobre que o do
cidadão comum.
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