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Comentário
Encontro com Saramago em cinema de Lisboa
FERNANDO MEIRELLES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Depois de uma semana
que pareceu uma verdadeira montanha russa emocional, saí de Cannes no
sábado e fui para Lisboa mostrar o filme "Ensaio sobre a Cegueira" para o autor da história,
José Saramago.
Por meses, antecipei o quanto a sessão me deixaria ansioso
-e não estava errado.
Infelizmente, o cine São Jorge, que nos foi reservado, não
tinha projeção digital, então foi
improvisado um sistema para
passarmos nossa fita. Pensei
em desistir de mostrar o filme
ao ver um teste da projeção,
mas o escritor já estava na sala
de espera e, em respeito ao
compromisso, achei melhor ir
em frente.
Sentei-me ao seu lado, expliquei aos poucos amigos presentes que só havia legendas em
francês e começamos a ver o filme. Sofri cada vez que uma
imagem não aparecia ou que
uma música mal soava. Ele assistiu ao filme todo mudo e sem
reação nenhuma.
Ao final da sessão, quando os
créditos começaram a subir,
sua mulher, Pilar, debruçou-se
sobre Saramago e me agradeceu, emocionada. Silêncio ao
meu lado. Antes de terminar os
créditos principais, as luzes do
cinema foram acesas, eu ousei
olhar para o lado e vi que ele fitava a tela sem reação, como se
estivesse interessado no nome
dos assistentes de cenografia
que passavam.
Deu tudo errado, pensei. Toquei seu braço levemente e lhe
falei que ele não precisava comentar nada naquele momento, mas, então, com uma voz
embargada, ele me disse, pausadamente: "Fernando, eu me
sinto tão feliz hoje, ao terminar
de ver este filme, como quando
acabei de escrever "O Ensaio
sobre a Cegueira'".
Apenas agradeci e ficamos ali
quietos. Dois marmanjos segurando as próprias lágrimas em
silêncio. Ele passou a mão nos
olhos, disfarçando a sua.
Pensei no meu pai. Emoção
sólida, dessas que se pode cortar em fatias com uma faca.
Num impulso, beijei sua testa.
Na conversa e no jantar que se
seguiram, ele disse que não
considera o filme um espelho
de seu trabalho e que nem
poderia ser assim, pois cada
pessoa tem uma sensibilidade
diferente.
Disse ter gostado da experiência de ver algo que conhecia, mas que, ao mesmo tempo,
não conhecia. Falou que o filme
não era perfeito, mas que nunca havia assistido a um filme
perfeito. Comentou algumas
imagens que o emocionaram
especialmente e disse ter achado o nosso Cão das Lágrimas
muito doce; preferia que fosse
mais agressivo.
Críticas
Quando lhe contei sobre as
críticas favoráveis e contrárias
ao filme em Cannes, incluindo
a da Folha, ele imediatamente
lembrou e recontou aquela historinha do velho que vem puxando um burro montado por
uma criança.
Um passante vê aquilo e acha
absurdo a criança estar montada enquanto um velho caminha, então eles invertem a posição. Outro passante cruza
com o grupo e reclama da situação: "Como um adulto deixa
uma criança a pé enquanto vai
confortavelmente montado?".
Então, os dois montam no burro, mas alguém acha aquilo
uma crueldade com um animal
tão pequeno.
Finalmente, resolvem ambos
carregar o burro nas costas, até
que outro passante observa como são estúpidos por carregar
o animal. E, enfim, o velho decide voltar para a primeira situação e parar de dar importância ao que dizem.
"É isso que faço sempre",
concluiu o escritor.
Acabo de deixar José Saramago e sua mulher no Ministério da Cultura de Portugal, onde está sendo exibida uma retrospectiva de seu trabalho e
sua vida.
Houve uma pequena coletiva
de imprensa ali, depois de visitarmos juntos a exposição.
Meu filminho de menos de
duas horas me pareceu muito
insignificante ao ser colocado
ao lado daquela obra de uma vida inteira.
FERNANDO MEIRELLES é o diretor de "Ensaio
sobre a Cegueira", "Cidade de Deus" (2002) e "O
Jardineiro Fiel" (2005), entre outros
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