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MARCELO COELHO
Elementar, meu caro Yamasaki
Falas em "verbetes" compõem quase todo "O Arquiteto", texto teatral de Rui Tavares
UM DEFEITO comum nos filmes antigos, e que aparece
em algumas peças de teatro
até hoje, é aquele tipo de diálogo que
eu chamaria "fique por dentro", ou
"fala em verbetes". Não sei se já inventaram nome melhor, mas funciona mais ou menos assim:
O filme, ou a peça, mostra Napoleão em Santa Helena. Está tudo
perdido, o velho imperador amarga
seu exílio; chega a hora de fazer o balanço da própria vida. Batem à porta,
é um visitante estrangeiro -e o diálogo começa.
"Veja", diz Napoleão, "esta é a espada que usei em Waterloo". O visitante faz então uma pergunta absurda: "Waterloo? Sua última batalha,
em 1815, na Bélgica?".
Claro que Napoleão dirá que sim.
O diálogo não tinha outra função a
não ser rememorar o público que
por acaso tivesse algumas dúvidas
sobre o acontecimento.
Falas desse tipo, em "verbetes",
compõem quase que a totalidade de
"O Arquiteto", texto teatral do historiador português Rui Tavares, que
acaba de ser publicado pela Martins
Fontes.
Mesmo assim, é uma leitura muito interessante. Uma coisa é um filme histórico cheio de diálogos óbvios envolvendo Napoleão. Mas
nem todo mundo tem informações
na ponta da língua a respeito de Minoru Yamasaki (1912-1986).
Foi, provavelmente, o arquiteto
mais azarado do século 20. O livro
de Rui Tavares funciona como um
ensaio sobre os desastres e ironias
de sua carreira, que é também um
exemplo de tudo o que pode dar errado quando se quer fazer uma coisa
boa.
O primeiro ato de "O Arquiteto" se
passa no dia 16 de março de 1972. A
data é bastante conhecida pelos historiadores da arte e do urbanismo
do século 20.
Marca, segundo o teórico e arquiteto Charles Jencks, "o dia em que
morreu a arquitetura moderna". Foi
quando se deu a implosão, em St.
Louis, de um vasto conjunto residencial chamado Pruitt-Ingoe, teoricamente uma obra-prima de planejamento urbano, construída no
início da década de 50.
O criador do Pruitt-Ingoe era Minoru Yamasaki. Desenhou 33 prédios de 11 andares, retinhos e iguais,
prevendo tudo quanto é tipo de área
comunitária, parque infantil, espaço
de circulação... Uma típica superquadra, em resumo.
Em poucos anos, aquilo virou uma
favela irrecuperável, e depois de décadas de assassinatos, estupros, tráfico de drogas, miséria e degradação,
as autoridades resolveram deitá-la
abaixo.
Os pós-modernistas vibram diante do fracasso daquela arquitetura
racionalista, uniforme, retangular e
autoritária.
Na peça de Rui Tavares, Minoru
Yamasaki se defende. Tinha planejado as coisas do melhor jeito possível. O conjunto residencial era dividido em duas partes: uma para brancos, outra para negros.
Acontece que alguns anos depois
foi votada uma lei antidiscriminação
no Estado do Missouri. Os brancos
não quiseram se misturar nos mesmos prédios. Todo o conjunto desvalorizou. A falta de manutenção era
total.
No calor, as janelas não se abriam;
o jeito era quebrá-las. O sistema de
elevadores, que funcionava mal desde o primeiro dia, parou de vez. Mas
as mulheres tinham medo de usar as
escadas, porque podiam ser estupradas. No fim, os empregados das
empresas de água e gás não se arriscavam mais a entrar nos edifícios.
Culpa da arquitetura moderna?
Talvez não. Ingenuidade autoritária,
certamente: como pensar em construir prédios imaculados e perfeitos
numa sociedade segregada e violenta? Depois do fracasso do Pruitt-Igoe, Minoru Yamasaki retomou a
sua carreira. Construiu obras muito
importantes na Arábia Saudita, onde o pai de Osama Bin Laden era o
principal empreiteiro da família
real.
O segundo ato mostra Yamasaki
no momento de sua volta por cima,
um ano depois. Estamos em 1973.
Ele inaugura um novo conjunto de
prédios e comemora com um engenheiro de origem árabe, Fazlur Rahman Khan, um grande feito técnico:
graças a um sistema de estruturas
tubulares, os edifícios construídos
são capazes de resistir ao impacto
até de um Boeing 707, o maior avião
de passageiros da época.
Tratava-se do World Trade Center. "World Trade Center? Aqueles
prédios que, em 2001...?" Exatamente. Os diálogos de "O Arquiteto"
sofrem de um tom "elementar, meu
caro Watson". Mas a peça vale ser lida: a realidade nunca é tão elementar assim.
coelhofsp@uol.com.br
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