São Paulo, sábado, 21 de maio de 2011

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RÉPLICA "ODISSEIA"

Homero também buscava a 'palavra em si'

Tradutor responde à resenha do professor Antonio Medina Rodrigues publicada na edição do último sábado

TRAJANO VIEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Antonio Medina Rodrigues abandonou um longo silêncio para resenhar uma tradução que fiz da "Odisseia". Seus leitores devem torcer para que esse retorno à publicação o anime a abdicar do merecido repouso e se traduza finalmente em obra, ampliando sua imponente contribuição bibliográfica ao helenismo.
No entanto, é preciso esclarecer ao leitor uma série de equívocos em seu texto. Caberia explicar melhor a afirmação de que Homero carece de "reflexão" ("Refletir? Em Homero não há disso"), pois o herói do poema se eternizou justamente por não dar um passo sem refletir sobre as consequências de cada um de seus atos.
E o que dizer das reflexões de Penélope sobre o caminho a seguir na ausência do marido? Figuras tão marcantes estão longe de ser autômatos destituídos de capacidade de pensar silenciosamente sobre as agruras do passado e as incertezas do futuro.
Antonio Medina Rodrigues afirma que busco em minha tradução a "palavra em si" e que isso seria herança modernista. Desconheço poeta da magnitude de Homero que não tenha se interessado pela palavra em si, que não tenha buscado sua expressividade mais secreta.
Isso não tem nada a ver com tradição oral ou escrita. Houve na bibliografia romântica sobre Homero a crença de que sua linguagem resultaria do jorro irrefletido, por pertencer à tradição oral.
Entretanto, vários estudos no século 20 mostraram que a produção da épica oral também é constituída de retomadas e reformulações no seu processo de criação.
A sugestão de traduzir "esperto" em lugar de "multiversátil" revela certo desconhecimento da estrutura da obra, pois o "multi" do composto "multiversátil" desencadeia a repetição de "muitos/muitas" que perpassa os quatro primeiros versos.

FITA MÉTRICA
"Esperto", segundo Medina, teria a "vantagem de não chamar a atenção", como se a palavra poética fosse a peça menos ousada do vestuário, com a qual se desejasse afastar o olhar curioso. Ora, a redundância de "poli/ pollá/ pollôn/ pollá" sugere que Homero buscou o oposto da discrição propugnada pelo resenhista.
Se meus versos insistem em não terminar nas linhas em que se inscrevem, isso talvez reflita o uso recorrente de enjambements -quebras de verso- no original.
Quanto à tradição literária à qual me vincula ("Sousândrade, Cesário Verde, João Cabral, Haroldo e Augusto de Campos e outros"), só me cabe agradecer: se pertenço de algum modo a uma corrente que tem como escritores os mencionados, direi que isso se deve ao fato de, entre outras coisas, não medir palavras com fita métrica. Aliás, sugiro que o crítico da "palavra longa e prestigiosa" volte ao original e releia os extensos vocábulos que Homero foi capaz de criar e acumular num único hexâmetro.
Pequei por não saber dançar. É difícil entender o que o resenhista tem em mente ao trazer à baila o tema da dança. Eu deveria ter cedido aos impulsos báquicos diante do computador? O público que ouviu Demódoco no canto 8 deveria ter formado uma sarabanda ao fim da rapsódia?
Citar um verso e afirmar que está "afastado do espírito" da obra não constitui procedimento sério de análise. O resenhista pode dar a impressão de se pretender passar por uma autoridade em Homero, o que com justeza estará longe de se considerar. Diante das múltiplas leituras que a Odisseia pode oferecer, este ímpeto de autoridade soa constrangedor.
Por fim, lamento muito que a resenha tenha deixado de informar que a edição é bilíngue e que traz um vasto aparato que procura ajudar os leitores a navegarem pelos mais de 12 mil versos de "Odisseia", como mapas, textos críticos e um índice remissivo completo.

TRAJANO VIEIRA é professor de língua e literatura grega na Unicamp. Também traduziu "Medeia" e "Filocletes" pela Editora 34.


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