TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

J ulgar "Uma Questão de Família" por sua infidelidade a "Rei Lear", tragédia shakespeariana na qual se inspira, não faria muito sentido. A proposta do escocês Don Boyd, cuja filmografia como produtor é mais extensa e respeitável do que a como diretor, não é mesmo essa. Melhor seria julgar o filme por aquilo que, nele, permanece fiel a Shakespeare.
Na decadente Liverpool contemporânea, o crime organizado reina sob a diligência do "godfather" Sandeman (Richard Harris). Nosso Lear, fato inédito, tem uma mulher (Lynn Redgrave), cuja morte resulta no mal-entendido, este sim legitimamente shakespeariano, que norteia a trama: embora ame e seja amado pela filha mais nova (aqui, autodeserdada), o patriarca colocará seu destino nas mãos das outras duas, falsas, arrivistas e vingativas.
Boyd não é fiel aos personagens (Edmund, por exemplo, o célebre vilão, torna-se aqui a figura secundária de um policial corrupto), mas sua pretensão é retomar sob uma perspectiva contemporânea, associada ao crime organizado, o tradicional ciclo de sangue dos desfechos shakespearianos.
A era da "sociedade de sangue" que os clássicos de Shakespeare tão bem representam, era da glorificação da guerra e da soberania da morte na medida em que o poder falava sempre pelo sangue e pela sanguinidade, foi, de certa forma, o tempo da honra e grandeza do crime. Boyd vê um resquício dessa era na Máfia. Sua produção é uma versão de Lear filtrada pelos filmes de Máfia, especialmente pela trilogia de Coppola ("O Poderoso Chefão").
O problema é que, recorrendo ao velho ciclo de sangue, se abandona previsivelmente a excessos, minando pouco a pouco a única virtude que podia salvar a empreitada: a solene gravidade e consciente sobriedade com que conduzia, de início, a encenação.

Uma Questão de Família
My Kingdom
 
Direção: Don Boyd
Produção: Reino Unido/Itália, 2001
Com: Richard Harris, Lynn Redgrave
Quando: a partir de hoje no Frei Caneca Unibanco Arteplex