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MARCELO COELHO
Deus e o Diabo na terra de Ronaldo
As reações que o jogador desperta vão além daquilo que permite a avaliação de suas condições físicas
SE DEPENDESSE de mim, eu ficava sem ver os jogos do Brasil na
Copa do Mundo. Mas sou arrastado pela onda verde-amarela e
acabo torcendo. De modo mais ranzinza, aliás, do que a média brasileira, porque ao descontentamento
com o jogo se soma o descontentamento com o fato de torcer.
Minhas observações sobre o assunto, portanto, são esparsas e não
muito confiáveis. Registro, em todo
caso, um fenômeno (se é que existe
algum "fenômeno" a essa altura do
campeonato) que não vem de agora
nos jogos da seleção.
Pode-se chamá-lo de síndrome do
primeiro gol. O primeiro gol não sai
nunca, e muitas seleções que vi jogar
só parecem acordar depois de terem
feito o placar de 1 a 0. Vira um paradoxo, porque, para jogarem bem,
precisam marcar o primeiro gol e só
marcam se conseguirem jogar bem
(ou não muito mal, ao menos).
Se é verdade que isso acontece, a
explicação pode ser razoavelmente
simples. Os brasileiros entram em
campo como vitoriosos. O adversário não existe; eles são os melhores
do mundo. Em pleno 0 a 0, com 30
ou 40 minutos de jogo, nossos craques fazem cera, dão passes laterais,
atrasam para o goleiro, como se o
seu interesse fosse garantir o resultado.
Repete-se com isso um conhecida
característica da nossa auto-imagem ("país do futuro", "gigante pela
própria natureza" etc.), que é a de
substituir a ética do esforço pela
idéia da predestinação. Não é questão apenas de otimismo com relação
às próprias possibilidades. Acredita-se com freqüência que "está escrito", que é nosso destino vencer o adversário.
Conspiração
Desse modo, não é preciso fazer
muita coisa. Apenas se espera um
sinal divino que confirme, na prática, aquilo que já tomamos como assegurado pelos astros. Quando esse
sinal não aparece, ou quando -desgraça das desgraças- perdemos
um jogo, é como se uma conspiração cósmica, um dilúvio decretado
por Javé se abatesse sobre nós.
Claro que a procura de um responsável é conseqüência natural
de toda derrota humana, mas o
"responsável", entre nós, assume o
papel de bode expiatório, vítima sacrificial ou, mais precisamente talvez, de pecador.
É verdade que Ronaldo jogou
muito mal na primeira partida e
que, na segunda, apesar do belo
passe para o gol, não desencantou.
Verdade que, com a entrada de Robinho, a seleção melhora muito.
Mas as reações que Ronaldo desperta vão muito além daquilo que
permite a avaliação de suas condições físicas ou técnicas.
Namorando uma mulher belíssima atrás de outra (pouco importa,
na mentalidade geral, se foi maltratado por elas) e feliz proprietário
de Ferraris, Ronaldo é visto com
uma inveja, um ressentimento, que
figuras como Kaká e Ronaldinho
Gaúcho não despertam.
Kaká tem um bom comportamento e uma origem social que legitimam seus contratos milionários. Ronaldinho Gaúcho é tão feinho, tão criança ainda, que merece
mimos de garoto prodígio.
Ronaldo já foi "Ronaldinho"
também. Sua passagem à vida adulta, com direito a tumultuosos convívios com beldades em boates, foi
vista como uma espécie de pecado,
de perdição. Perdeu o próprio nome; não sabemos mais como chamá-lo.
Está gordo? Isso nos dias de hoje
equivale a uma falta grave de caráter. Pior: desde o fatídico episódio
da final na Copa de 98, ele é suspeito de tudo, da simples dor de corno
à epilepsia, da instabilidade emocional ao endemoninhamento, do
encosto à covardia.
Jorge Caldeira, no livro "Ronaldo: Glória e Drama no Futebol Globalizado" (editora 34, 2002), destrincha a suposta "convulsão" de
Ronaldo e argumenta, de forma
persuasiva, que naquela tarde Ronaldo teve apenas um episódio de
"parassonia", coisa parecida com
sonambulismo ou com terror noturno. Mais detalhes no meu blog
O "mistério" em torno de Ronaldo ganha dimensões místicas, de
qualquer modo, porque sua figura
acaba encarnando não a desconfiança que tenhamos diante de um
jogador humano, mas a desconfiança de que nosso destino não seja tão claro e garantido como pensamos. Resta torcer, então, pelo
fim do mistério, pela escalação de
Robinho (caso parecido com o de
Denilson em 98) e, sobretudo, pelo
primeiro gol.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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