São Paulo, quarta-feira, 21 de junho de 2006

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MARCELO COELHO

Deus e o Diabo na terra de Ronaldo

As reações que o jogador desperta vão além daquilo que permite a avaliação de suas condições físicas

SE DEPENDESSE de mim, eu ficava sem ver os jogos do Brasil na Copa do Mundo. Mas sou arrastado pela onda verde-amarela e acabo torcendo. De modo mais ranzinza, aliás, do que a média brasileira, porque ao descontentamento com o jogo se soma o descontentamento com o fato de torcer.
Minhas observações sobre o assunto, portanto, são esparsas e não muito confiáveis. Registro, em todo caso, um fenômeno (se é que existe algum "fenômeno" a essa altura do campeonato) que não vem de agora nos jogos da seleção.
Pode-se chamá-lo de síndrome do primeiro gol. O primeiro gol não sai nunca, e muitas seleções que vi jogar só parecem acordar depois de terem feito o placar de 1 a 0. Vira um paradoxo, porque, para jogarem bem, precisam marcar o primeiro gol e só marcam se conseguirem jogar bem (ou não muito mal, ao menos).
Se é verdade que isso acontece, a explicação pode ser razoavelmente simples. Os brasileiros entram em campo como vitoriosos. O adversário não existe; eles são os melhores do mundo. Em pleno 0 a 0, com 30 ou 40 minutos de jogo, nossos craques fazem cera, dão passes laterais, atrasam para o goleiro, como se o seu interesse fosse garantir o resultado.
Repete-se com isso um conhecida característica da nossa auto-imagem ("país do futuro", "gigante pela própria natureza" etc.), que é a de substituir a ética do esforço pela idéia da predestinação. Não é questão apenas de otimismo com relação às próprias possibilidades. Acredita-se com freqüência que "está escrito", que é nosso destino vencer o adversário.

Conspiração
Desse modo, não é preciso fazer muita coisa. Apenas se espera um sinal divino que confirme, na prática, aquilo que já tomamos como assegurado pelos astros. Quando esse sinal não aparece, ou quando -desgraça das desgraças- perdemos um jogo, é como se uma conspiração cósmica, um dilúvio decretado por Javé se abatesse sobre nós.
Claro que a procura de um responsável é conseqüência natural de toda derrota humana, mas o "responsável", entre nós, assume o papel de bode expiatório, vítima sacrificial ou, mais precisamente talvez, de pecador.
É verdade que Ronaldo jogou muito mal na primeira partida e que, na segunda, apesar do belo passe para o gol, não desencantou.
Verdade que, com a entrada de Robinho, a seleção melhora muito. Mas as reações que Ronaldo desperta vão muito além daquilo que permite a avaliação de suas condições físicas ou técnicas.
Namorando uma mulher belíssima atrás de outra (pouco importa, na mentalidade geral, se foi maltratado por elas) e feliz proprietário de Ferraris, Ronaldo é visto com uma inveja, um ressentimento, que figuras como Kaká e Ronaldinho Gaúcho não despertam.
Kaká tem um bom comportamento e uma origem social que legitimam seus contratos milionários. Ronaldinho Gaúcho é tão feinho, tão criança ainda, que merece mimos de garoto prodígio.
Ronaldo já foi "Ronaldinho" também. Sua passagem à vida adulta, com direito a tumultuosos convívios com beldades em boates, foi vista como uma espécie de pecado, de perdição. Perdeu o próprio nome; não sabemos mais como chamá-lo.
Está gordo? Isso nos dias de hoje equivale a uma falta grave de caráter. Pior: desde o fatídico episódio da final na Copa de 98, ele é suspeito de tudo, da simples dor de corno à epilepsia, da instabilidade emocional ao endemoninhamento, do encosto à covardia.
Jorge Caldeira, no livro "Ronaldo: Glória e Drama no Futebol Globalizado" (editora 34, 2002), destrincha a suposta "convulsão" de Ronaldo e argumenta, de forma persuasiva, que naquela tarde Ronaldo teve apenas um episódio de "parassonia", coisa parecida com sonambulismo ou com terror noturno. Mais detalhes no meu blog
O "mistério" em torno de Ronaldo ganha dimensões místicas, de qualquer modo, porque sua figura acaba encarnando não a desconfiança que tenhamos diante de um jogador humano, mas a desconfiança de que nosso destino não seja tão claro e garantido como pensamos. Resta torcer, então, pelo fim do mistério, pela escalação de Robinho (caso parecido com o de Denilson em 98) e, sobretudo, pelo primeiro gol.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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