São Paulo, sábado, 21 de junho de 2008

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Crítica/"Macacos Malvados"

Livro desonra influência da ficção científica de Philip K. Dick

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dentre todos os gêneros da literatura, talvez a ficção científica seja o que mais exija do leitor a tal "suspensão voluntária da descrença" sugerida por Coleridge.
Sem muita credulidade compulsória não se embarca em qualquer viagem narrativa, muito menos em naves espaciais através do cosmos. É fácil verificar que "Macacos Malvados", romance do norte-americano Matt Ruff, tem como qualidade mais evidente exigir esse esforço numa medida além do razoável. Ao lê-lo, não foi possível precisar em que altura do livro minha descrença deixou de levitar, desfazendo-se em mil pedaços ao cair no chão. Posso adiantar, porém, que isso aconteceu logo nas páginas iniciais.
Tudo começa num quarto branco onde uma mulher chamada Jane Charlotte está algemada à espera do psiquiatra que a interrogará. A trama é desenvolvida nesse esquema de pergunta e resposta entre o médico e sua suposta paciente. Jane é acusada de assassinato e, para se justificar, relata os episódios de sua vida desde a infância em San Francisco junto à mãe e ao irmão.
Após cometer delinqüências na juventude, ela afirma ter sido recrutada pela organização de combate ao mal cujo nome dá título ao livro. É assim que Jane Charlotte adere a uma cruzada maniqueísta de eliminação de assassinos seriais e abusadores sexuais.
Até aí não há nada demais.
Parece mais uma trama de ação dessas que pululam nas telas de cinema. A dificuldade para manter a peteca da descrença no ar aumenta quando Jane recebe sua arma, um revólver CN (de "causas naturais") que dispara infartos, tromboses etc.
Para não citar as atividades de outras divisões da organização, a Panóptico (que vigia a tudo e a todos), a Custo-Benefício e os Palhaços Assustadores, assassinos seriais regenerados.
Ok, haveria passagens divertidas (se você é daqueles que prefere ler o roteiro a assistir o filme), mas Matt Ruff não consegue imprimir visualidade às cenas, acelerando tudo em demasia e deixando à deriva alguns personagens que poderiam ser interessantes. "Macacos Malvados" é devedor de Philip K. Dick (1928-1982), autor visionário que afirmou o seguinte num discurso de 1977: "Estou certo de que não me crêem, e de que tampouco crêem que acredito no que afirmo. São livres de acreditar ou não, porém creiam ao menos nisto: eu não estou brincando. Muitas pessoas asseguram recordar suas vidas anteriores. Eu, de minha parte, afirmo que posso recordar uma vida presente distinta".
Antecipador da esquizofrenia massiva do século 21, Dick não merece os seguidores que tem.


JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra)


MACACOS MALVADOS
Autor:
Matt Ruff
Tradução: Angela Pessoa
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 43 (264 págs.)
Avaliação: ruim



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