|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
WALTER SALLES
Revisitando o pop
Popular . Provisório. Produzido em série. Acessível. Divertido. Erótico. Astucioso. E facilmente esquecível.
Foi assim que o artista plástico
Richard Hamilton definiu o que
era o movimento pop logo depois
da primeira manifestação organizada por um grupo de artistas,
arquitetos e pensadores ingleses
em 1956, intitulada "This Is Tomorrow". Mais um estado de espírito do que um movimento,
aliás, que contaminou todas as
formas de expressão, refutou as
"belas-artes" e aproximou-se da
pulsação da rua.
Do nascimento do pop até hoje,
muitas pedras rolaram. O que é
pop hoje? Britney Spears, de mãe
a tiracolo, é pretensamente pop
-além de pretensamente virgem. Anúncios garantem que este
ou aquele produto é pop. Quase
tudo, em suma, pode ser pop.
Ou não. Para tornar as coisas
um pouco mais claras, uma grande exposição intitulada "Os Anos
Pop" tomou conta do museu
Beaubourg, na França, e passa
agora a percorrer vários outros
países. Marcadamente histórica e
mergulhando nas raízes do movimento, essa retrospectiva "agit-pop" ajuda a entender as duas faces de um mesmo fenômeno. De
um lado, o pop como caixa de ressonância das vanguardas dos
anos 50 e 60. Do outro, o pop como uma importante ferramenta
de marketing, intimamente ligada à expansão do mercado consumidor do pós-guerra.
Essa tendência é facilmente perceptível. Desde os anos 50, a oferta de produtos para jovens multiplica-se. A identificação com uma
ou outra marca torna-se essencial
para a sobrevivência dos diferentes bens de consumo. "O pop é a
cultura do mercado moderno",
resume o escritor e crítico americano Greil Marcus na revista
francesa "Inrockuptibles". "Veja
o campeão de golfe Tiger Woods.
Ele não aparece mais sem o boné
da Nike. Esse cara é um escravo
-ele pertence à Nike. E isso sempre fez parte da cultura pop: a relação com os produtos."
Ambíguo por excelência, o pop
foi também um movimento periférico, transgressor e marginal, na
contramão do mercado. E, também, político, numa época marcada pela Guerra Fria e pela descolonização. "Antes do pop, os negros, as mulheres e os jovens contavam pouco. Quando o pop se
infiltrou na música, nos filmes, na
sexualidade, definindo novos modelos comportamentais, tudo mudou. Não se perguntava mais
"donde você vem" e sim "o que você
tem a dizer'", retoma Marcus.
Jasper Johns desconstruindo a
bandeira americana, Fahlström
trocando o símbolo da Esso por
LSD, o lúbrico Felix the Cat botando o desenho animado de pernas para o ar, o filme "Sem Destino" confrontando a violência endêmica dos EUA, Basquiat grafitando nas ruas de Nova York, todos são, a princípio, gestos de
uma cultura pop à contracorrente. Mas nenhum artista sintetizou
tão perfeitamente a dicotomia
pop -o seu lado consensual e sua
face contestatória- quanto
Andy Warhol.
Reproduzindo à exaustão as
imagens de bens de consumo (as
sopas Campbell) ou os ícones do
seu tempo (de Marilyn a Mao),
Warhol recuperou não só a temática mas também a técnica de
multiplicação das mídias populares da época. Até suas frases eram
imbuídas dessa ambivalência.
"Amo Hollywood. Todo mundo é
de plástico, e eu amo o plástico",
dizia.
Sua Factory, o estúdio em que
Warhol reinava em Nova York,
foi o ponto de encontro entre a
pop art e o pop-rock convulsivo
do Velvet Underground. Foi, também, um dos únicos lugares onde
esse diálogo se deu nos EUA. A arte pop e a música pop só andaram
verdadeiramente de mãos dadas
na Inglaterra.
Tive a oportunidade de conhecer Warhol rapidamente, durante
a gravação de um documentário
sobre... Edson Arantes do Nascimento para a extinta Rede Manchete. Como outros ícones da época, Pelé havia sido pintado -e
multiplicado- por Warhol. A
entrevista aconteceu na Factory.
O clima em torno de Warhol e
seus súditos era teatral, afetado.
E, como o seu retratado, Warhol
falava de si mesmo na terceira
pessoa. Para quem já não era
exatamente um admirador do
seu trabalho, as circunstâncias
não ajudavam.
Revendo os quadros de Warhol
expostos em "Os Anos Pop", percebo que há uma outra dimensão
em sua obra que me passou despercebida. Warhol não pintou
apenas o sonho americano. Retratou os pesadelos daquela mesma sociedade: a cadeira elétrica,
os choques raciais, os assassinatos, os acidentes de carro. Warhol
revelou a dessensibilização de toda uma cultura, a massificação
que torna tudo igual no jornal
das oito: o acidente e a glória, o
êxtase e a agonia. "Sim, dizem
que sou um espelho, mas, se um
espelho olha para outro espelho, o
que se pode ver?", perguntava.
A resposta poderia ser: tudo. Ou
nada. Ao final de "Os Anos Pop",
tem-se a estranha sensação de
que o aspecto crítico, irônico e
desconstrutivo do movimento
pop não predominou. E que, com
o pop, a nova cultura made in
USA pôde exportar ao mesmo
tempo o produto e sua crítica, a
garrafa de Coca-Cola e a serigrafia de Warhol. Como um veneno
que vem com o próprio antídoto.
O pop implodiu em grande parte em 68. "Uma coisa termina, outra começa", dizia Léger. Mas "o
mais efêmero dos fenômenos culturais", como queriam os seus
criadores, não morreu totalmente. O refrão do The Who, "Quero
morrer antes de ser velho", não
vingou. Algo do espírito pop sobreviveu ao tempo e aí está, possivelmente, o seu maior paradoxo.
Texto Anterior: Etiópia: Antropólogo revê mitos e história etíopes Próximo Texto: Erudito: Zubin Mehta volta com saudades do parque Índice
|