UOL


São Paulo, segunda-feira, 21 de julho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA

Mostra com quatro filmes do diretor iraniano acompanha a chegada de "Dez" e inclui trilogia sobre a vida em seu país

Aridez de Kiarostami reinventa a sétima arte

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN

Centenário , o cinema é um senhor que não pára de se reinventar. E Abbas Kiarostami, depois de revelar ao mundo um Irã que ninguém conhecia, é hoje um de seus maiores reinventores.
Uma amostra desse projeto nada fácil está em cartaz nesta semana no Cinearte com quatro filmes de Kiarostami, que acompanham a estréia do excepcional "Dez".
Da fase descoberta, quando Kiarostami ainda era um desconhecido no Ocidente, a mostra traz "Onde Fica a Casa de Meu Amigo" (87) e "Close Up" (90). O primeiro forma um tríptico com "E a Vida Continua" (92) e "Através das Oliveiras" (94). Nesses filmes, Kiarostami retrata a vida no Irã a partir dos efeitos devastadores de um terremoto.
Inicia também uma reflexão sobre o próprio cinema, pondo em cena um diretor em situações em que a brutalidade do real desafia qualquer convenção ficcional.
Por isso a câmera se atém demoradamente, de modo exasperante, sobre os fatos, as pessoas e suas dores. Esse modo de filmar é que oferece a oportunidade da revelação. Como o olhar infantil (daí a ênfase nos personagens crianças) que se depara pelas primeiras vezes com as dificuldades da existência, a câmera do diretor deixa o real impregnar o celulóide, dá-lhe a atenção suficiente e consegue transmitir uma qualidade humanista que se tornou a marca do cinema iraniano.
Como Rossellini, Kiarostami retoma procedimentos, como o uso de atores amadores, que lhe permitem se abandonar ao real, em vez de tentar formatá-lo com significados alheios. Como Rossellini, Kiarostami parte das ruínas (lá, a guerra; aqui, um terremoto) para tentar compreender como o real se revela para e pelo cinema.
Em "Close Up", o dispositivo anuncia a revolução radical realizada em "Dez". Um homem tenta escapar da prisão pleiteando ser um diretor. O que dá espaço para uma reflexão (distante da aridez metateórica) em que os mecanismos de falsificação do cinema se desmontam um a um para deixar impregnar o filme com os impasses de como observar a realidade sem traí-la. Seu acabamento, em "Dez", é obtido no genial dispositivo da câmera sem a intervenção do diretor, numa espécie de objetivismo de altíssima potência.
A mostra se completa com "Gosto de Cereja" (97). Aqui, o dispositivo do carro é utilizado como uma espécie de janela para o mundo. Nele, o olhar e o movimento (o cinema, em suma) se completam numa bela composição sobre como a vida emerge mesmo do desejo de morte.
Por fim, o documentário "ABC África" (2001) lança um desafio ao diretor. O de mostrar uma dura realidade (a das crianças órfãs em decorrência da Aids em Uganda) dentro de um formato mais tradicional e sem recorrer aos efeitos restauradores da ficção.
Depois de mostrar o drama africano, Kiarostami realiza um momento de gênio em que o cinema avança mais uma etapa em sua reinvenção. Sem luz, a câmera passeia pelos corredores de um hotel e, sem o apoio da imagem, o significado trágico daquela experiência ganha todo o seu sentido. Relâmpagos e trovões trazem uma tal carga de medo e de morte que nenhum efeito especial ainda se mostrou capaz de inventar.

Semana Abbas Kiarostami


    
Onde: Cinearte (av. Paulista, 2.073, SP, tel. 0/xx/11/3285-3696); às 14h. Até 24/7
Quanto: de R$ 8 a R$ 11



Texto Anterior: Memória/Literatura: Com a morte de Bolaño, desaparece o criador de formas
Próximo Texto: Panorâmica - Festival: Inédito de Woody Allen abrirá mostra em Veneza
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.