São Paulo, sábado, 21 de julho de 2007

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Crítica/poesia

Bandeira sacro não rima com libertino

Antologia que opõe caráter religioso e libidinoso na obra poética de Manuel Bandeira adota critério muito discutível

ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Esta coletânea retoma uma antologia de poemas religiosos de Manuel Bandeira, somando-lhes agora "alguns libertinos". A seleção e o posfácio são de Edson Nery da Fonseca; Gilberto Freyre participa com o sucinto prefácio da primeira edição. Está no título a fácil oposição que serviu de critério. Fácil, mas muito discutível: a poesia mais viva não consagra a nitidez artificial dos maniqueísmos, sobretudo quando o poeta decanta suas experiências pessoais mais absorventes.
O contraste entre o sagrado e o libidinoso, que sugere uma dupla matriz poética de Bandeira, está longe de contemplar a densidade artística de quem espiritualiza exatamente a finitude da matéria e dá peso à base física de tantas sublimações. Nosso poeta amadureceu como um grande estóico, e sua humildade se mescla à altivez da solidão luxuosa, não raro magisterial, de quem se reconhece plenamente como sujeito de experiências tão fundas quanto pessoais -um feito, nada "menor", no tempo das impessoalidades.
Seguramente, a religiosidade tem muito peso para Bandeira, por força da formação católica, do interesse pelo cotidiano comum, da abertura para a cultura popular (embora, sintomaticamente, a antologia não tenha aberto espaço para poemas em que comparecem o Cussaruim, Pai Zusé, Tia Ciata, Janaína...). Deus, santas, anjos, milagres e orações são, sim, matéria poética bandeiriana, por vezes elaborada com devoção. Mas o mesmo poeta que num poema dá presença ao "meu anjo da guarda", em outro afirma: "Os anjos não compreendem os homens"; quem anuncia "me abismarei na contemplação de Deus e de sua glória" também conclui "a vida é uma agitação feroz e sem finalidade".

Sentimento da imediatez
Trata-se de polaridades dramaticamente fixadas ou do livre movimento da lírica por tudo o que pode imantá-la? Na raiz da poesia de Bandeira está o sentimento da imediatez e finitude das coisas, dos fatos e dos seres, limites que não constringem a experiência da espiritualização, pelo contrário, intensificam-na. "Tudo é um milagre", aceita o mesmo poeta que conclui: "Tudo, menos a morte./ - Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres".
Enquanto dura, o sensível é milagroso; enquanto consola, o crucifixo da família deve ser abraçado. Os sinos das igrejas cantam aos ouvidos do poeta não exatamente a Anunciação ou os Finados, mas a dolorosa e íntima perplexidade diante de seu destino de tísico e das mortes sucessivas da mãe, do pai, da irmã, do irmão.
Também a "libertinagem" é fundamento da poética bandeiriana: está assumida como título de um de seus principais livros e espalha-se, na obra, por inúmeros poemas que exaltam os prazeres do corpo. A princípio, este traço seria o contraponto da religiosidade (sempre na adoção de dicotomias mecânicas) ou uma antítese da espiritualização. Mas o poeta não é simplório: as mulheres do sabonete Araxá, que o excitam na prosaica propaganda, parecem-lhe as três Marias; a nudez feminina é um êxtase celestial, a "substância da carne" incita a "espiritualizar-se/ na aspiração de mais ternura".
A tentativa de separar o que a poesia junta dá em equívocos como o de não reconhecer que um poeta, mesmo materialista, conta com o plano da transcendência, inclusa na ativação dos símbolos e na expectativa de significação. Forçar o contraste entre o puramente religioso e o inelutavelmente erótico pode trazer resultados divertidos: o poema "Cântico dos Cânticos" figura entre os "libertinos..."
No conjunto, os cantos de Bandeira promovem belos acordes dissonantes, que só uma audição muito conservadora buscará captar como harmonizações em separado.


ALCIDES VILLAÇA é professor de literatura brasileira na USP

POEMAS RELIGIOSOS E ALGUNS LIBERTINOS


Autor: Manuel Bandeira
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 42 (112 págs.)
Avaliação: regular


NA INTERNET - Leia trecho

www.folha.com.br/072012


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