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Crítica/poesia
Bandeira sacro não rima com libertino
Antologia que opõe caráter religioso e libidinoso na obra poética de Manuel Bandeira adota critério muito discutível
ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Esta coletânea retoma
uma antologia de poemas religiosos de Manuel Bandeira, somando-lhes
agora "alguns libertinos". A seleção e o posfácio são de Edson
Nery da Fonseca; Gilberto
Freyre participa com o sucinto
prefácio da primeira edição.
Está no título a fácil oposição
que serviu de critério. Fácil,
mas muito discutível: a poesia
mais viva não consagra a nitidez artificial dos maniqueísmos, sobretudo quando o poeta
decanta suas experiências pessoais mais absorventes.
O contraste entre o sagrado e
o libidinoso, que sugere uma
dupla matriz poética de Bandeira, está longe de contemplar
a densidade artística de quem
espiritualiza exatamente a finitude da matéria e dá peso à base
física de tantas sublimações.
Nosso poeta amadureceu como
um grande estóico, e sua humildade se mescla à altivez da solidão luxuosa, não raro magisterial, de quem se reconhece plenamente como sujeito de experiências tão fundas quanto pessoais -um feito, nada "menor",
no tempo das impessoalidades.
Seguramente, a religiosidade
tem muito peso para Bandeira,
por força da formação católica,
do interesse pelo cotidiano comum, da abertura para a cultura popular (embora, sintomaticamente, a antologia não tenha
aberto espaço para poemas em
que comparecem o Cussaruim,
Pai Zusé, Tia Ciata, Janaína...).
Deus, santas, anjos, milagres e
orações são, sim, matéria poética bandeiriana, por vezes elaborada com devoção. Mas o
mesmo poeta que num poema
dá presença ao "meu anjo da
guarda", em outro afirma: "Os
anjos não compreendem os homens"; quem anuncia "me
abismarei na contemplação de
Deus e de sua glória" também
conclui "a vida é uma agitação
feroz e sem finalidade".
Sentimento da imediatez
Trata-se de polaridades dramaticamente fixadas ou do livre movimento da lírica por tudo o que pode imantá-la? Na
raiz da poesia de Bandeira está
o sentimento da imediatez e finitude das coisas, dos fatos e
dos seres, limites que não constringem a experiência da espiritualização, pelo contrário, intensificam-na. "Tudo é um milagre", aceita o mesmo poeta
que conclui: "Tudo, menos a
morte./ - Bendita a morte, que
é o fim de todos os milagres".
Enquanto dura, o sensível é
milagroso; enquanto consola, o
crucifixo da família deve ser
abraçado. Os sinos das igrejas
cantam aos ouvidos do poeta
não exatamente a Anunciação
ou os Finados, mas a dolorosa e
íntima perplexidade diante de
seu destino de tísico e das mortes sucessivas da mãe, do pai, da
irmã, do irmão.
Também a "libertinagem" é
fundamento da poética bandeiriana: está assumida como título de um de seus principais livros e espalha-se, na obra, por
inúmeros poemas que exaltam
os prazeres do corpo. A princípio, este traço seria o contraponto da religiosidade (sempre
na adoção de dicotomias mecânicas) ou uma antítese da espiritualização. Mas o poeta não é
simplório: as mulheres do sabonete Araxá, que o excitam na
prosaica propaganda, parecem-lhe as três Marias; a nudez feminina é um êxtase celestial, a
"substância da carne" incita a
"espiritualizar-se/ na aspiração
de mais ternura".
A tentativa de separar o que a
poesia junta dá em equívocos
como o de não reconhecer que
um poeta, mesmo materialista,
conta com o plano da transcendência, inclusa na ativação dos
símbolos e na expectativa de
significação. Forçar o contraste
entre o puramente religioso e o
inelutavelmente erótico pode
trazer resultados divertidos: o
poema "Cântico dos Cânticos"
figura entre os "libertinos..."
No conjunto, os cantos de
Bandeira promovem belos
acordes dissonantes, que só
uma audição muito conservadora buscará captar como harmonizações em separado.
ALCIDES VILLAÇA é professor de literatura
brasileira na USP
POEMAS RELIGIOSOS E
ALGUNS LIBERTINOS
Autor: Manuel Bandeira
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 42 (112 págs.)
Avaliação: regular
NA INTERNET - Leia trecho
www.folha.com.br/072012
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