|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
O casamento gay e a volta da intolerância
No fim de julho, o papa exortou os políticos católicos a
combater qualquer lei que legalize a união de casais homossexuais. Os não-católicos, ele acrescentou, deveriam pegar carona
com a Igreja de Roma para defender a "lei moral natural".
Quase simultaneamente, o presidente Bush declarou que casamento deve ser entre homem e
mulher, embora lembrando que é
preciso respeitar as escolhas amorosas de todos. Ele expressava assim a contradição de seu eleitorado, que é cristão e conservador,
mas que é também americano, ou
seja, não gosta que o Estado se
meta na vida privada dos cidadãos.
Na semana seguinte, a Igreja
Episcopal enfrentou uma ameaça
de cisma ao aprovar a nomeação
de um bispo assumidamente homossexual.
Eu imaginava que esses eventos
despertariam debates adormecidos sobre a existência ou não de
princípios morais "naturais", sobre o caráter laico do Estado etc.
Aprestava-me a participar quando, no começo de agosto, foram
publicados os resultados surpreendentes de uma pesquisa de
opinião do instituto Gallup.
Resumindo: entre os americanos, houve um repentino declínio
da aprovação da "agenda gay".
Em maio passado, 60% dos americanos pensavam que as relações
homossexuais deveriam ser legais; hoje, só 48% pensam assim.
Desde 1997, uma maioria (crescente) de americanos afirmava
que ser gay é "um estilo de vida
aceitável". Hoje essa é a opinião
de uma minoria. A queda não vale apenas para as fileiras conservadoras: quase um quarto dos democratas favoráveis à união civil
gay mudou de opinião. O que
aconteceu?
Primeira explicação: a idéia do
casamento gay produz uma resistência particular. Por quê? O
americano médio divorcia-se sem
muita hesitação, mas, paradoxalmente, mais de 80% dos casais
americanos confirmam sua
união numa cerimônia religiosa.
Ou seja, os casamentos acontecem e quebram-se segundo as variações das paixões e dos desejos,
mas ninguém admite. Quase todos preferem continuar concebendo o casamento como sacramento eterno, orientado pelo projeto de criar filhos. Nesse contexto, a idéia do casamento gay (que
é sempre efeito de uma escolha
afetiva) é incômoda, pois desvenda uma verdade que vale para
quase todos os casamentos modernos: eles são instáveis não por
acidente, mas por essência, por serem cimentados mais pela precariedade dos sentimentos que por
compromissos solenes e procriativos diante de Deus.
Segunda explicação. Nos últimos tempos, o estilo de vida gay
triunfou na cultura popular americana. O canal de televisão a cabo Bravo propõe, com grande sucesso, o show "Queer Eye for a
Straight Guy" (olhar homo para
um cara hétero). A cada semana,
cinco gays reorganizam a vida de
um heterossexual: arrumam sua
casa, sua aparência física, suas escolhas de indumentária, suas maneiras, ensinando-lhe "estilo,
bom gosto e classe". Os gays se
tornaram alvos privilegiados e
explícitos de muitas propagandas
por serem, em média, segundo as
pesquisas de mercado, consumidores mais abastados e mais requintados que os heterossexuais.
Quando a mídia recenseia a vida
noturna e os prazeres do momento, as boates e os clubes gays lotam regularmente os primeiros
lugares das listas.
Em suma, o universo gay está se
tornando, na cultura popular, um
ideal de hedonismo bem-sucedido: "Eles, sim, têm uma vida
boa". Subentendido: não a gente.
Quando, numa proposição que
habita a mente do homem da
rua, o sujeito é uma terceira pessoa do plural ("eles"), a paranóia
nunca está longe.
É fácil objetar que há uma
grande distância entre o ideal da
vida gay, que assombra a cabeça
dos heterossexuais, e a realidade
do universo gay, que não é tão
gaio assim. Além disso, o dito estilo de vida gay concerne a uma
minoria de homossexuais, que
talvez sejam fascinados pela imagem que lhes é proposta, como um
espelho, pelos heterossexuais que
os idealizam.
Mas não adianta objetar: há
uma razão de fundo que alimenta a idealização coletiva do universo gay. Os homossexuais, reprimidos por causa de suas práticas sexuais, só puderam reivindicar respeito e liberdade constituindo-se como grupo definido
por sua sexualidade sufocada.
Consequência: eles são o único
grupo social que deve sua consistência a uma modalidade comum de desejo sexual. A coesão
feminista das mulheres, por
exemplo, é decidida pelo sexo biológico e pela discriminação comum no trabalho e na vida de família, não por uma preferência
sexual. Travestis e transexuais se
definem como grupos a partir da
experiência comum de um desacordo entre seu sexo biológico e
seu gênero, não por uma preferência sexual.
Por isso, por serem o único grupo social definido pela forma de
seus prazeres, os homossexuais
encarnam facilmente, aos olhos
dos "normais", um ideal genérico
de prazer sexual: "eles" ("à diferença de nós") ousam e sabem gozar.
É um privilégio duvidoso. Afinal, na Europa de 70 anos atrás,
os judeus eram aqueles que, "à diferença da gente", ousavam e sabiam fazer dinheiro, não é?
Quem é idealizado por saber
pretensamente, de uma forma ou
de outra, aproveitar a vida, mais
cedo ou mais tarde, acaba sendo
apontado como o responsável por
nossas privações. A lógica corre
assim: eles sabem gozar, eles têm
o prazer que não tenho, eles me
privam. A idealização do gozo
dos outros é, frequentemente, a
antecâmara do ódio e da perseguição.
Escuto, nestes dias, aqui no Brasil, vozes pretensamente liberais
contra o casamento gay. Comentam: "Eles querem casar? Mas
que coisa mais careta! A gente esperava deles que fossem os porta-bandeiras da revolução sexual".
É um jeito velado de dizer: já gozam mais que a gente, agora vão
apoderar-se também dos modestos prazeres do lar, os únicos que
nos sobram?
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Documentário: TV expõe as mil e uma faces de Ziraldo Próximo Texto: Panorâmica - Literatura: Evento mistura poesia e outras artes Índice
|