São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2005

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Uma língua em extinção



Em Brasilândia (MS), 11 pessoas são as únicas no mundo que falam ofaié, idioma prestes a acabar
EDUARDO SIMÕES
ENVIADO ESPECIAL A BRASILÂNDIA (MS)

A brasileira Francisca da Silva, 92, não fala nem entende o português. No dia-a-dia, comunica-se quase somente com o seu marido, João Pereira, 82, na única língua que conhece, o ofaié, seu idioma nativo. Com ele, relembra a caça e a pesca que lhes asseguravam a sobrevivência no passado, a expulsão de suas terras tradicionais, às margens do rio Paraná, no Mato Grosso do Sul, e o assentamento que só recentemente lhes trouxe alguma paz.
Josilene Martins, 13, não compreende nada do que dizem os vizinhos. Índia ofaié-xavante como Francisca e João, Josilene, no entanto, nunca teve a oportunidade de aprender a fala de seu povo, dominada hoje por apenas 11 dos 68 habitantes da reserva, que fica no município de Brasilândia, a cerca de 400 km de Campo Grande, capital sul-mato-grossense.
Sem registro escrito, o ofaié-xavante é uma das 47 línguas em extinção no Brasil, segundo o "Ethnologue". José de Souza, 30, cacique da reserva e um dos mais jovens índios da comunidade que ainda falam fluentemente a língua, conta que entre 1998 e 2000, ele mesmo, que estudou apenas até a 8ª série, chegou a ensinar informalmente o ofaié às crianças da comunidade. No entanto, diz ele, por sugestão da Secretaria Municipal da Educação de Brasilândia, que mantém ali uma pequena escola, as aulas teriam sido suspensas. O motivo: o ensino de ofaié estaria atrapalhando "a fixação do português".
"A gente ficou muito sentido, porque é uma falta de respeito", queixa-se o cacique. "Antes, tentaram acabar com a gente fisicamente, agora tentam terminar com a nossa cultura."
Secretário municipal da Educação de Brasilândia desde janeiro deste ano, Francisco Aparecido Lins afirma que desconhece a decisão da gestão anterior. E diz que já esteve reunido com o cacique ao menos duas vezes para discutir a possibilidade de incluir, a partir de 2006, o ofaié como disciplina obrigatória no currículo escolar. Desde que "eles se proponham a trabalhar seriamente para aprender", ressalva o secretário.
À espera de uma solução legal para o problema, os ofaié-xavantes vêem sua língua com dias contados.
"É bastante preocupante porque há pelo menos 18 crianças, com idade entre 6 e 14 anos, que gostariam de aprender, mas não têm como. Isso, apesar de a Constituição de 1988 garantir o direito de preservação das tradições indígenas, além do aprendizado do português. Mas, sozinhos, não temos recursos para elaborar livros", lamenta o cacique.

O uso
Na comunidade, o ofaié está presente na vida dos índios desde seu nascimento. Além do nome em português, eles são "batizados" em ofaié. Sempre com palavras ligadas à natureza, escolhidas no momento do parto, pelos mais velhos. O cacique, por exemplo, chama-se Kói em sua língua nativa, palavra que significa "fundo", porque sua mãe o deu à luz num "lugar profundo". Também seus três filhos receberam identidades ofaiés: Ariel, 3, chama-se Kouê ("sabiá", porque havia muitos em volta); Josiele, 7, é Or-te-fô ("menina"), e o mais velho, Josiel, 10, é Xouê ("fumaça", porque ao nascer, segundo o cacique, havia forte cerração na comunidade).
A tradição do "batismo" em ofaié, no entanto, também tem perdido sua força. Neuza da Silva (ou Teng-hô, que significa "algo distante"), 44, não nomeou nenhum de seus seis filhos com palavras de sua língua nativa. E, embora fale, encontra resistência para ensinar aos mais jovens.
"Falar não é tão difícil, mas duro é ensinar sem as letras", lamenta Neuza, cuja expectativa é a elaboração de uma cartilha, missão assumida pela pesquisadora Maria das Dores de Oliveira, da Universidade Federal de Alagoas.
"Tento falar com as crianças, mas elas não entendem, aí tenho que explicar em português. Com a cartilha pode ser que eles se interessem mais", espera Neuza.

O povo e a fala
De acordo com o lingüista Eduardo Ribeiro, 34, do Museu Antropológico de Goiânia, a agregação do nome xavante ao ofaié é um engano etnológico histórico na identificação da tribo. Por muitos anos, o termo foi usado para identificar quaisquer índios nômades que viviam no cerrado, como os xavantes originais, do vizinho Mato Grosso.
O lingüista conta que o ofaié tem grande importância científica porque é a única fala da família de mesmo nome, pertencente ao tronco lingüistico macro-jê, que abriga, entre outros, o apinajé, o caiapó e o próprio xavante. Segundo ele, a primeira documentação da fala foi feita pelo alemão Kurt Unkel, apelidado pelos índios guaranis de "Nimuendaju", no início do século 20.
Entre as peculiaridades da língua, está a variação de gênero para a primeira pessoa do singular, ou seja, há um "eu" masculino e outro feminino.
"Também é interessante observar que o ofaié quase não tem empréstimos do português e poucos sofreram uma adaptação à fonologia da língua, como "cachorro", que virou "catchoro". E mais: os ofaiés falam português com sotaque", aponta.
Ribeiro está nos Estados Unidos, com uma bolsa do Endangered Languages Documentation Programme, desenvolvendo, desde 2003, um projeto que visa a elaboração de material didático para o ensino do ofaié. Ele lamenta que muitas canções, mitos da comunidade e até mesmo segredos como da fabricação de flechas já tenham morrido com os mais velhos. Mas ressalta que o número de falantes, ainda jovens, é proporcionalmente grande, o que aumenta as esperanças de um resgate e preservação da língua para as gerações futuras.
"É surpreendente que eles tenham preservado a língua apesar dos maus bocados que passaram. Temos que tirar o chapéu para os ofaiés", ressalta o lingüista.


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