São Paulo, segunda-feira, 21 de agosto de 2006

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GUILHERME WISNIK

Cidade "casa-grande"


Em São Paulo, apartamentos cada vez menores continuam compartimentando ad infinitum os seus ambientes

NO início dos anos 50, o sociólogo francês Roger Bastide, que viveu 16 anos no Brasil, publicou, no jornal, uma série de artigos sobre São Paulo. Tratava-se, então, de prática comum entre pensadores das ciências humanas debater em público questões arquitetônicas, haja visto os exemplos de Mário e Oswald de Andrade.
Conhecendo de perto o modelo da cidade européia, Bastide distingue com clareza traços particulares do processo de verticalização de São Paulo, que reconhece ser o destino da cidade, em função do crescimento demográfico e da elevação do preço dos terrenos e do problema crônico de circulação. No entanto, segundo Bastide, esse vetor de crescimento vertical está em contradição direta com a "mentalidade horizontal" da formação colonial brasileira, forjada na experiência distendida da vida nas sedes de fazenda e na promiscuidade familiar do sistema "casa-grande e senzala", analisado por Gilberto Freyre.
Em "Sobrados e Mocambos", o próprio Freyre analisou a sobrevivência desse padrão de sociabilidade rural no espaço das cidades brasileiras. Bastide, contudo, mesmo seguindo essa diretriz básica, enxerga no "arranha-céu" paulistano a condensação das contradições apontadas nas dualidades de Freyre. O arranha-céu, para ele, "ao construir-se sobre as ruínas da antiga cidade, não desmancha essa estrutura comunitária, separa-a em altura apenas e a reduz à miniatura". Quer dizer: os edifícios são empilhamentos de casarões coloniais miniaturizados, reproduzindo verticalmente tanto a estrutura familiar patriarcal quanto a organização fundiária da cidade feita de sobrados, com seus tamanhos exíguos de lote, recuos laterais obrigatórios etc.
O advento da arquitetura moderna, na Europa, no início do século 20, representou a invenção de um "novo morar", em que a ociosidade espacial da mansão burguesa, dependente do trabalho abundante de serviçais, é substituída pela compactação dos espaços (eliminando-se corredores) e racionalização de ambientes vitais como a cozinha, equipada por artefatos industriais, e integrada às áreas de estar. Hoje, em São Paulo, mais de meio século depois das observações de Bastide, apartamentos cada vez menores continuam compartimentando ad infinitum os seus ambientes a ponto de manter, religiosamente, uma senzala inabitável junto da cozinha (com quarto e banheiro), devidamente isolada da área social, no entanto, por uma copa. Não me refiro, aqui, à casa popular, mas a um padrão de classe média que privilegia lavabos, playgrounds e vagas para carros em detrimento dos espaços de moradia.
Muitos arquitetos, ou leigos simpáticos ao que supõem ser a causa nobre da arquitetura moderna, elegem o neoclassicismo requentado que prolifera no mercado imobiliário da cidade como foco de ataque. Trata-se de um problema mal posto, já que essas fachadas "históricas" apenas espelham, do ponto de vista do gosto, uma mentalidade colonizada, profundamente enraizada na organização familiar e na estrutura fundiária da cidade.


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