São Paulo, quinta-feira, 21 de agosto de 2008

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NINA HORTA

Antes do inexorável fim


Em quais melhoramentos na comida poderíamos investir? Tirar as sementes da melancia, o que a deixaria menos bonita

TENHO UM amigo muito inteligente e que escreve lindamente. Interessa-se por tudo, e muito por cozinha. Tive o desplante de considerar um livro seu difícil, com um resto de jargão acadêmico. Se eu o quisesse ler bem, em cada parágrafo, teria que sair à cata de Kant e seus parentes.
Ele ficou danado da vida e chamou os leitores com dificuldade de burros. Claro que me senti a mais ignorante de todas e resolvi ler, como desafio, sua tese de doutorado. Ah, essa vou ler nem que me custem as lentes dos óculos que comprei na farmácia para enxergar muuuito!!!!!!
No primeiro parágrafo, já tive que estudar evolucionimo e criativismo, assim, na diagonal, Karl Popper, Reichenbach e, vejam só, um pedacinho da explicação sobre como funciona essa coisa inacreditável que é o nosso olho. E de que jeito poderia ter evoluído? "A mudança na forma da molécula retinal força uma mudança na forma da proteína, a rodopsina... nesse momento denominada de metarrodopsina 2, a proteína cola-se a outra proteína, chamada transducina... antes de transformar-se em metarrodopsina 2..."
Uhm, sei, bocejei pensando nos olhinhos tão vivos da galinha, burrinhos, sem teses, sem amores, e a beleza do galo, a perfeição do ovo.
Acontece que quem nasceu para burro tem uma tendência a se estabelecer nesse patamar. Depois de reler o Darwin, os não-darwinistas (cada bom argumento me convence, de ambos os lados), dar uma passada de olhos num daqueles canais de TV de bichos e paisagens, de um documentário sobre Manoel de Barros, dormi. Ou melhor, caí naquele sono à flor da pele, na vigília, tentando recordar o que havia lido, prenhe de teorias e significados e hipóteses, refutáveis ou não, e probabilidades improváveis.
Pensei em colorido, tudo denso, pojado de sentido, beleza e prazer. Este mundo que nos é dado tão gratuitamente e o esforço sobre-humano dos cientistas para desvendá-lo com toda a ciência e lógica possíveis. E o sonho foi me deixando sem paradigmas, bem idiota e deslumbrada. As flores, cada uma do seu jeito, detalhes impensáveis, cores impossíveis, loucas, loucas de beleza. O mar de Paraty, a prata roxa de uma sororoca recém-pescada ao sol, o azul impecável do céu, o cheiro bom da água esverdeada junto às arvores, aquela ondinha pequena, redonda, que se enrosca na areia, as pitangueiras floridas, o sol cálido, o vento fresco.
O mundo é a coisa mais divertida e surpreendente, e nós, blasés, sem olhos para ver. Vítimas do excesso de muito bom como minha tia Lucinda. Fui visitá-la numa passagem pelo Rio, me debrucei na janela, com aquele marzão na frente, e comentei a beleza. Ela levantou com dificuldade da cadeira e foi espiar. Há anos que não olhava a paisagem e se agradou muito de ver o Atlântico a seus pés.
Bom, das benesses do mundo, deste plano aterrorizador na sua perfeição, nós todos sabemos, mesmo que inconscientemente. Resta saber como a inteligência que o moldou teve essa idéia de jerico de nos botar todos a morrer, sem explicação nem hora marcada, largando para trás esta terra nostra.
O caracol, a semente enroscada do tataré, o sal, a vaca, veja que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela que passa...
Claro, todos têm alguma queixa. Fiz uma enquete no mundo alimentar. Em quais melhoramentos na comida poderíamos investir antes do inexorável fim?
Tirar as sementes da melancia, o que a deixaria menos bonita. Retirar o feno da alcachofra. Simplesmente reclassificar o chuchu e a abobrinha como animais peçonhentos. Criar galinhas com dez moelas. Jabuticabas sem caroço. Jaca sem cheiro.
Bobagem, bobagem, cavalo dado não se olha os dentes, é deitar e rolar.

ninahorta@uol.com.br



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