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CINEMA - ESTRÉIAS
'O Ouro' debate crise do herói americano
JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas
"O Ouro de Ulysses", de Victor
Nunez, é, à primeira vista, apenas
um bom melodrama familiar misturado com policial.
Nos pântanos da Flórida, um
apicultor viúvo, Ulee (Peter Fonda), só quer cuidar de sua produção de mel.
Mas o mundo zumbe à sua volta
como um enxame de abelhas: o filho, Jimmy (Tom Wood), está na
cadeia, por assalto a um carro-forte; a nora, Helen (Christine Dunford), drogada até os ossos, vive à
mercê de dois bandidos em Orlando; as netas moram na casa do avô
e dependem do seu amparo.
O que dá densidade a esse drama
doméstico, elevando-o mesmo à
dimensão épica, é o que aconteceu
antes de a ação do filme começar.
Ulee (apelido de Ulysses) era casado com Penélope, que durante
anos o esperou voltar da Guerra
do Vietnã, como a Penélope homérica esperou Ulisses voltar da
Guerra de Tróia.
A morte de Penélope, há seis
anos, desencadeou a crise moral
que dispersou a família.
Ulee, hoje, é uma espécie de herói aposentado, que se aferra a seu
trabalho e tem de segurar as pontas domésticas do jeito que dá.
O ouro de Ulee, visto dessa perspectiva, não é apenas o mel especial que ele produz, mas sobretudo sua retidão moral, sua "capacidade de assumir a responsabilidade", como se diz no filme.
Há aqui um diálogo implícito
com a tradição do filme de ação
norte-americano, protagonizado
por um herói que defende os valores do trabalho e da família.
Se a ameaça a esses valores, no
cinema norte-americano clássico,
era obra de malfeitores externos, a
serem vencidos pelo mocinho,
aqui a corrosão atingiu a própria
família do herói: o filho trocou o
trabalho pelo crime, a nora trocou
o lar pelo vício, a neta mais velha
trocou a boneca pelo namorado
sacana.
Ulee não pode se aposentar ainda. Tem uma última missão a
cumprir: resgatar Helen das mãos
dos bandidos, como Ulisses e seus
companheiros tiveram de ir buscar Helena na cidadela troiana.
Há uma inversão cronológica
das referências homéricas, mas
pouco importa: Victor Nunez está
mais preocupado com a mitologia
americana do que com a grega.
Na fotografia granulada e nos
tons esmaecidos, na discrição dos
enquadramentos, no andamento
cadenciado, "O Ouro de Ulysses"
dá a clara impressão de um drama
crepuscular, de um epílogo reflexivo ao cinema épico americano.
Como os últimos filmes de Clint
Eastwood, "O Ouro de Ulysses"
retrata os impasses do herói americano num mundo conturbado
pela confusão moral. A postura
que adota talvez seja acusada de
retrógrada, com sua valorização
da família, do trabalho artesanal,
da vida simples do interior.
Não deixa de ser uma fina e dolorosa ironia que o herói seja interpretado -com comovente
convicção- por um ator que simbolizou a contestação aos mais sagrados valores americanos. Mudou Peter Fonda, mudou o cinema ou mudou a América? Mudaram -ou mudamos- todos.
Filme: O Ouro de Ulysses
Produção: EUA, 1997
Direção: Victor Nunez
Com: Peter Fonda, Christine Dunford
Quando: a partir de hoje, nos cines SP
Market 1, Estação Lumière 1 e Espaço
Unibanco de Cinema - sala 1
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