São Paulo, sexta, 21 de agosto de 1998

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CINEMA - ESTRÉIAS
'O Ouro' debate crise do herói americano

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

"O Ouro de Ulysses", de Victor Nunez, é, à primeira vista, apenas um bom melodrama familiar misturado com policial.
Nos pântanos da Flórida, um apicultor viúvo, Ulee (Peter Fonda), só quer cuidar de sua produção de mel.
Mas o mundo zumbe à sua volta como um enxame de abelhas: o filho, Jimmy (Tom Wood), está na cadeia, por assalto a um carro-forte; a nora, Helen (Christine Dunford), drogada até os ossos, vive à mercê de dois bandidos em Orlando; as netas moram na casa do avô e dependem do seu amparo.
O que dá densidade a esse drama doméstico, elevando-o mesmo à dimensão épica, é o que aconteceu antes de a ação do filme começar.
Ulee (apelido de Ulysses) era casado com Penélope, que durante anos o esperou voltar da Guerra do Vietnã, como a Penélope homérica esperou Ulisses voltar da Guerra de Tróia.
A morte de Penélope, há seis anos, desencadeou a crise moral que dispersou a família.
Ulee, hoje, é uma espécie de herói aposentado, que se aferra a seu trabalho e tem de segurar as pontas domésticas do jeito que dá.
O ouro de Ulee, visto dessa perspectiva, não é apenas o mel especial que ele produz, mas sobretudo sua retidão moral, sua "capacidade de assumir a responsabilidade", como se diz no filme.
Há aqui um diálogo implícito com a tradição do filme de ação norte-americano, protagonizado por um herói que defende os valores do trabalho e da família.
Se a ameaça a esses valores, no cinema norte-americano clássico, era obra de malfeitores externos, a serem vencidos pelo mocinho, aqui a corrosão atingiu a própria família do herói: o filho trocou o trabalho pelo crime, a nora trocou o lar pelo vício, a neta mais velha trocou a boneca pelo namorado sacana.
Ulee não pode se aposentar ainda. Tem uma última missão a cumprir: resgatar Helen das mãos dos bandidos, como Ulisses e seus companheiros tiveram de ir buscar Helena na cidadela troiana.
Há uma inversão cronológica das referências homéricas, mas pouco importa: Victor Nunez está mais preocupado com a mitologia americana do que com a grega.
Na fotografia granulada e nos tons esmaecidos, na discrição dos enquadramentos, no andamento cadenciado, "O Ouro de Ulysses" dá a clara impressão de um drama crepuscular, de um epílogo reflexivo ao cinema épico americano.
Como os últimos filmes de Clint Eastwood, "O Ouro de Ulysses" retrata os impasses do herói americano num mundo conturbado pela confusão moral. A postura que adota talvez seja acusada de retrógrada, com sua valorização da família, do trabalho artesanal, da vida simples do interior.
Não deixa de ser uma fina e dolorosa ironia que o herói seja interpretado -com comovente convicção- por um ator que simbolizou a contestação aos mais sagrados valores americanos. Mudou Peter Fonda, mudou o cinema ou mudou a América? Mudaram -ou mudamos- todos.

Filme: O Ouro de Ulysses Produção: EUA, 1997 Direção: Victor Nunez Com: Peter Fonda, Christine Dunford Quando: a partir de hoje, nos cines SP Market 1, Estação Lumière 1 e Espaço Unibanco de Cinema - sala 1



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