São Paulo, Terça-feira, 21 de Setembro de 1999
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MEMÓRIA

Autor articulou cotidiano e absurdo

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

José J. Veiga foi um autor singular. Tentaram encaixotar sua obra na categoria do "realismo fantástico". Pode ser. O que importa é que seus romances e contos criaram um universo absolutamente pessoal, fundado num modo original de articular o cotidiano e o absurdo.
Nas narrativas de Veiga, o real e o fantástico não são dimensões distintas. São vasos comunicantes ou, mais que isso, aspectos diversos de um mesmo mundo, de um mesmo espaço sensível.
Quem quer que tenha lido um romance como "A Hora dos Ruminantes" (1966) terá ficado marcado para sempre pela estranha e perturbadoramente real atmosfera criada pelo autor.
No livro, um pacato lugarejo vê com inquietação a chegada de forasteiros que, sem nada dizer, constroem cercas e levantam edifícios (fábricas? galpões?) na vizinhança da aldeia.
Aos poucos, coisas estranhas passam a acontecer, culminando na invasão do lugarejo por centenas de bois.
Todas as interpretações foram feitas, vinculando a invasão à opressão política, ao "progresso" que põe os povos em desarmonia com a natureza, ao desequilíbrio espiritual do homem contemporâneo etc.
Todas as leituras são lícitas, assim como a aproximação com as narrativas de pragas bíblicas. Mas o que torna mais inquietante o texto de Veiga, e garante sua permanência, é a espessura das coisas que descreve.
Qualquer que seja seu sentido simbólico, o absurdo narrado incomoda o leitor como uma presença física. Isso é um sortilégio de que só os grandes artistas são capazes.


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