São Paulo, quinta-feira, 21 de setembro de 2006

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Filme revê trajetória de negro "líder carismático"

João de Camargo fundou igreja voltada ao sincretismo em Sorocaba

Ex-escravo, personagem real viveu de 1858 a 1942 e possui devotos ainda hoje, entre eles Paulo Betti, para quem o filme é "oferenda"

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Paulo Betti nasceu branco e pobre, numa região povoada por negros, no interior paulista.
"Não é a mesma coisa que ser preto e pobre. Tive mais chances que meus amigos negros de mesma condição social", diz o último dos 15 filhos de uma empregada doméstica com um servente de pedreiro, hoje ator famoso e polemista da moral e ética da política brasileira.
Mas essa é a conclusão de um homem adulto -55 anos. Na infância, Betti teve "uma espécie de óculos para ver o negro numa posição favorável".
Ele cruzava a região de Sorocaba a pé, para visitar na roça o avô, imigrante italiano, meeiro de um senhor de terras negro.
No caminho, passava pela capela de um certo João de Camargo, ídolo religioso nas redondezas. Passou a endereçar-lhe pedidos de êxito nas provas da escola. Tornou-se devoto.

Preto velho
É a história desse preto velho, que Florestan Fernandes (1920-1995) definiu como "líder carismático", que Betti decidiu levar ao cinema em sua primeira experiência como diretor de um longa-metragem.
"Cafundó" (co-dirigido por Clóvis Bueno) estréia amanhã em São Paulo. Nascido escravo, em 1858, João de Camargo engajou-se na Guerra Federalista (1893-95). Na versão do filme, ele vive um período em que vaga pelo país cercado de (poucas) mulheres e (muita) bebida.
Depois de ter uma visão mística, Camargo achou-se escolhido para orientar os desiludidos da sorte e receitar curas para males diversos. Enfim, para fundar uma igreja sincrética, com elementos do cristianismo, do candomblé, da umbanda e do espiritismo, que atraiu uma romaria de fiéis e episódios de repressão policial, até perto de sua morte, em 1942.
A interpretação desse personagem rendeu ao ator Lázaro Ramos o troféu Kikito no Festival de Gramado do ano passado. "Cafundó" levou também o Prêmio Especial do júri e os de melhor fotografia (José Roberto Eliezer) e direção de arte (Vera Hamburger).
Entre os primeiros prêmios colhidos por "Cafundó" e a idéia de fazer uma cinebiografia de João Camargo, Paulo Betti levou 12 anos.
O período tão largo, segundo o diretor, não se deve apenas à demora em reunir o orçamento do filme, que custou R$ 4 milhões e teve apoio de estatais como Petrobras, Correios, BNDES e Eletrobrás, por meio das leis federais de incentivo à cultura. Nem somente a percalços, como uma disputa envolvendo direitos de um livro sobre Camargo, travada na fase de escrita do roteiro.
"Muito do tempo que levou tudo isso é por causa do meu próprio hibridismo [como diretor e ator]", afirma. "Parei, fui fazer novela. Parei de novo, fui fazer filmes", cita.
Para participar do elenco dos ainda inéditos longas "A Grande Família - O Filme", de Maurício Farias, e "Casa da Mãe Joana", de Hugo Carvana, Betti acabou postergando também o lançamento nos cinemas de "Cafundó", que está concluído desde o ano passado.
É que o diretor optou por um modelo alternativo de estréia, indo pessoalmente de cidade a cidade no primeiro dia de exibição, para apresentar um miniespetáculo com um misto de linguagens artísticas a que ele denominou "Palco & Tela".

Vela
"Vou ao palco, declamo uma poesia, acendo uma vela, depois passa o filme", descreve. Antes, porém, uma banda de 21 músicos especialmente formada para a ocasião toca peças da trilha do filme, composta por André Abujamra e faz "uma surpresinha no final", conta.
Hoje, se não chover, a banda tocará na calçada da avenida Paulista, em frente ao Conjunto Nacional, onde fica o Cine Bombril, que abriga a pré-estréia do filme, com sessão às 21h30, para convidados.
Depois de testar essa fórmula, Betti se diz "muito disposto a levar o filme desse jeito, praça por praça", embora reconheça que um lançamento artesanal reduz as chances de o filme conquistar público vasto.
"Claro que eu gostaria que meu filme fosse um "2 Filhos de Francisco" [ recordista de público de 2005, com 5,3 milhões de espectadores], mas ele foi se encaminhando para um lançamento pequeno", afirma.
De toda forma, com a conclusão do longa Betti deu por cumprida uma missão que julgava ter. "Era como se eu devesse contar essa história, uma obrigação, uma oferenda", diz.


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