|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Filme revê trajetória de negro "líder carismático"
João de Camargo fundou igreja voltada ao sincretismo em Sorocaba
Ex-escravo, personagem real viveu de 1858 a 1942 e possui devotos ainda hoje, entre eles Paulo Betti, para quem o filme é "oferenda"
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Paulo Betti nasceu branco e
pobre, numa região povoada
por negros, no interior paulista.
"Não é a mesma coisa que ser
preto e pobre. Tive mais chances que meus amigos negros de
mesma condição social", diz o
último dos 15 filhos de uma empregada doméstica com um
servente de pedreiro, hoje ator
famoso e polemista da moral e
ética da política brasileira.
Mas essa é a conclusão de um
homem adulto -55 anos. Na
infância, Betti teve "uma espécie de óculos para ver o negro
numa posição favorável".
Ele cruzava a região de Sorocaba a pé, para visitar na roça o
avô, imigrante italiano, meeiro
de um senhor de terras negro.
No caminho, passava pela capela de um certo João de Camargo, ídolo religioso nas redondezas. Passou a endereçar-lhe pedidos de êxito nas provas
da escola. Tornou-se devoto.
Preto velho
É a história desse preto velho, que Florestan Fernandes
(1920-1995) definiu como "líder carismático", que Betti decidiu levar ao cinema em sua
primeira experiência como diretor de um longa-metragem.
"Cafundó" (co-dirigido por
Clóvis Bueno) estréia amanhã
em São Paulo. Nascido escravo,
em 1858, João de Camargo engajou-se na Guerra Federalista
(1893-95). Na versão do filme,
ele vive um período em que vaga pelo país cercado de (poucas) mulheres e (muita) bebida.
Depois de ter uma visão mística, Camargo achou-se escolhido para orientar os desiludidos da sorte e receitar curas para males diversos. Enfim, para
fundar uma igreja sincrética,
com elementos do cristianismo, do candomblé, da umbanda e do espiritismo, que atraiu
uma romaria de fiéis e episódios de repressão policial, até
perto de sua morte, em 1942.
A interpretação desse personagem rendeu ao ator Lázaro
Ramos o troféu Kikito no Festival de Gramado do ano passado. "Cafundó" levou também o
Prêmio Especial do júri e os de
melhor fotografia (José Roberto Eliezer) e direção de arte
(Vera Hamburger).
Entre os primeiros prêmios
colhidos por "Cafundó" e a
idéia de fazer uma cinebiografia de João Camargo, Paulo
Betti levou 12 anos.
O período tão largo, segundo
o diretor, não se deve apenas à
demora em reunir o orçamento
do filme, que custou R$ 4 milhões e teve apoio de estatais
como Petrobras, Correios,
BNDES e Eletrobrás, por meio
das leis federais de incentivo à
cultura. Nem somente a percalços, como uma disputa envolvendo direitos de um livro sobre Camargo, travada na fase
de escrita do roteiro.
"Muito do tempo que levou
tudo isso é por causa do meu
próprio hibridismo [como diretor e ator]", afirma. "Parei, fui
fazer novela. Parei de novo, fui
fazer filmes", cita.
Para participar do elenco dos
ainda inéditos longas "A Grande Família - O Filme", de Maurício Farias, e "Casa da Mãe
Joana", de Hugo Carvana, Betti
acabou postergando também o
lançamento nos cinemas de
"Cafundó", que está concluído
desde o ano passado.
É que o diretor optou por um
modelo alternativo de estréia,
indo pessoalmente de cidade a
cidade no primeiro dia de exibição, para apresentar um miniespetáculo com um misto de
linguagens artísticas a que ele
denominou "Palco & Tela".
Vela
"Vou ao palco, declamo uma
poesia, acendo uma vela, depois passa o filme", descreve.
Antes, porém, uma banda de 21
músicos especialmente formada para a ocasião toca peças da
trilha do filme, composta por
André Abujamra e faz "uma
surpresinha no final", conta.
Hoje, se não chover, a banda
tocará na calçada da avenida
Paulista, em frente ao Conjunto Nacional, onde fica o Cine
Bombril, que abriga a pré-estréia do filme, com sessão às
21h30, para convidados.
Depois de testar essa fórmula, Betti se diz "muito disposto a
levar o filme desse jeito, praça
por praça", embora reconheça
que um lançamento artesanal
reduz as chances de o filme
conquistar público vasto.
"Claro que eu gostaria que
meu filme fosse um "2 Filhos de
Francisco" [ recordista de público de 2005, com 5,3 milhões
de espectadores], mas ele foi se
encaminhando para um lançamento pequeno", afirma.
De toda forma, com a conclusão do longa Betti deu por cumprida uma missão que julgava
ter. "Era como se eu devesse
contar essa história, uma obrigação, uma oferenda", diz.
Texto Anterior: Horário nobre na TV Aberta Próximo Texto: Frase Índice
|