São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2008

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ARTIGO

A ficção da realidade

Politicamente correto, "Linha de Passe" frustra como cinema e ensaio sociológico

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA ILUSTRADA

Quando a pobre paraplégica preparava-se para ser imersa nas águas, durante a cerimônia de batismo promovida pelos evangélicos de "Linha de Passe", não consegui deixar de pensar na possibilidade de a coitada engasgar e morrer afogada.
Afinal, num filme em que pouca coisa acontecia -e o que acontecia dava errado-, a morte da irmã talvez fosse uma opção radical, tragicômica, capaz de me retirar do enfado com que acompanhava aquele compenetrado desfile de lugares-comuns sobre a pobreza urbana numa cinzenta São Paulo de documentário.
Mas, claro que não. Daniela Thomas e Walter Salles não demorariam tanto para dar uma guinada dessas, à Monty Python, num filme tão sério e empenhado.
"Linha de Passe" é uma obra que repisa muitos aspectos da dramaturgia de esquerda dos anos 50/60 -mas, em sintonia com os tempos atuais, é melhor na técnica narrativa e, claro, não "aponta para a revolução".

Atrasado
A semelhança com a linhagem do Centro Popular de Cultura, do Arena, do "Eles Não Usam Black-Tie" foi, aliás, ressaltada por Cacá Diegues, ao escrever na Ilustrada de domingo passado que a história da mãe e seus quatro filhos é "semelhante a tantas outras de nossa tradição cultural politicamente engajada".
Talvez por ter sido um dos mais afiados formadores dessa tradição, Cacá diz ter experimentado algo de "sublime" em "Linha de Passe", uma obra que nos colocaria diante da "grandeza do cinema".
A meu ver, em que pesem as boas cenas de futebol e de rua, a engenhosa costura da narrativa e o ótimo Kaíque dos Santos, não é apenas grandeza cinematográfica que falta ao filme. Como ensaio sociológico, também não vai muito longe.
Posso estar totalmente enganado, mas acho difícil que estejamos diante de uma obra, como declarou o diretor à Folha, capaz de, "20 anos depois", nos dizer de "onde viemos, quem somos e para onde estamos indo". "Terra Estrangeira" atingiu essa dimensão, mas "Linha de Passe" parece ter chegado atrasado no "momentum" do Brasil de Lula e do pré-pré-Sal.
Sem dúvida, "Cidade de Deus" é o filme que, nesta década, melhor terá cumprido o papel de fixar um ponto de referência na linha do tempo da memória nacional (e, por favor, basta com essa conversa de "cosmética da fome").

Ilusão documental
Como qualquer outro, também o filme de Daniela e Waltinho "estetiza" seu objeto. No caso, uma estetização na qual a parafernália cinematográfica é mobilizada para se ocultar, criando uma ilusão documental de neutralidade, uma aparência despojada, que nos mostraria "a vida como ela é". Mais do que isso, o tratamento ascético envolve a família da periferia num véu de respeito e pudor puritanos, que nos dissuade de formar um juízo crítico sobre seus integrantes.
Diferentemente dos representantes da elite, malvados, drogados ou pusilânimes, os pobres são sempre vítimas, e devemos desculpá-los, mesmo que se comportem de maneira irritante, como a pateta mãe corintiana, já crescida e experiente o bastante para arrumar e manter uma gravidez àquela altura do campeonato (sem trocadilho).
A estratégia estética e mercadológica de "Linha de Passe" se presta justamente a análises do tipo "tem o mérito de confrontar o espectador da elite com uma realidade que ele desconhece ou não quer ver".
Francamente: moro em São Paulo há 24 anos e não creio que precise ir ao shopping, comprar um saco de pipoca e entrar num cinema para ter uma revelação sobre a pobreza que testemunho diariamente.
Mas não tenho dúvida de que esse é o tipo do filme capaz de despertar a solidariedade de platéias politicamente corretas daqui e, em especial, da Europa. Gente que aceitará voluntariamente o contrato da narrativa que retrataria a "verdadeira" vida nessa nossa metrópole do Terceiro Mundo, já transformada em clichê cult em círculos gringos.
De prático, o filme fez-me (eu, que nunca fui assaltado em São Paulo) prestar atenção na minha mochila. Apesar dos alertas, ainda costumava deixá-la sobre o banco ao lado.


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