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ARTIGO
A ficção da realidade
Politicamente correto, "Linha de Passe" frustra como cinema e ensaio sociológico
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA ILUSTRADA
Quando a pobre paraplégica preparava-se para
ser imersa nas águas,
durante a cerimônia de batismo promovida pelos evangélicos de "Linha de Passe", não
consegui deixar de pensar na
possibilidade de a coitada engasgar e morrer afogada.
Afinal, num filme em que
pouca coisa acontecia -e o que
acontecia dava errado-, a morte da irmã talvez fosse uma opção radical, tragicômica, capaz
de me retirar do enfado com
que acompanhava aquele compenetrado desfile de lugares-comuns sobre a pobreza urbana numa cinzenta São Paulo de
documentário.
Mas, claro que não. Daniela
Thomas e Walter Salles não demorariam tanto para dar uma
guinada dessas, à Monty
Python, num filme tão sério e
empenhado.
"Linha de Passe" é uma obra
que repisa muitos aspectos da
dramaturgia de esquerda dos
anos 50/60 -mas, em sintonia
com os tempos atuais, é melhor
na técnica narrativa e, claro,
não "aponta para a revolução".
Atrasado
A semelhança com a linhagem do Centro Popular de Cultura, do Arena, do "Eles Não
Usam Black-Tie" foi, aliás, ressaltada por Cacá Diegues, ao escrever na Ilustrada de domingo passado que a história da
mãe e seus quatro filhos é "semelhante a tantas outras de
nossa tradição cultural politicamente engajada".
Talvez por ter sido um dos
mais afiados formadores dessa
tradição, Cacá diz ter experimentado algo de "sublime" em
"Linha de Passe", uma obra
que nos colocaria diante da
"grandeza do cinema".
A meu ver, em que pesem as
boas cenas de futebol e de rua,
a engenhosa costura da narrativa e o ótimo Kaíque dos Santos, não é apenas grandeza cinematográfica que falta ao filme. Como ensaio sociológico,
também não vai muito longe.
Posso estar totalmente enganado, mas acho difícil que estejamos diante de uma obra, como declarou o diretor à Folha,
capaz de, "20 anos depois", nos
dizer de "onde viemos, quem
somos e para onde estamos indo". "Terra Estrangeira" atingiu essa dimensão, mas "Linha
de Passe" parece ter chegado
atrasado no "momentum" do
Brasil de Lula e do pré-pré-Sal.
Sem dúvida, "Cidade de
Deus" é o filme que, nesta década, melhor terá cumprido o
papel de fixar um ponto de referência na linha do tempo da
memória nacional (e, por favor,
basta com essa conversa de
"cosmética da fome").
Ilusão documental
Como qualquer outro, também o filme de Daniela e Waltinho "estetiza" seu objeto. No
caso, uma estetização na qual a
parafernália cinematográfica é
mobilizada para se ocultar,
criando uma ilusão documental de neutralidade, uma aparência despojada, que nos mostraria "a vida como ela é". Mais
do que isso, o tratamento ascético envolve a família da periferia num véu de respeito e pudor
puritanos, que nos dissuade de
formar um juízo crítico sobre
seus integrantes.
Diferentemente dos representantes da elite, malvados,
drogados ou pusilânimes, os
pobres são sempre vítimas, e
devemos desculpá-los, mesmo
que se comportem de maneira
irritante, como a pateta mãe
corintiana, já crescida e experiente o bastante para arrumar
e manter uma gravidez àquela
altura do campeonato (sem
trocadilho).
A estratégia estética e mercadológica de "Linha de Passe" se
presta justamente a análises do
tipo "tem o mérito de confrontar o espectador da elite com
uma realidade que ele desconhece ou não quer ver".
Francamente: moro em São
Paulo há 24 anos e não creio
que precise ir ao shopping,
comprar um saco de pipoca e
entrar num cinema para ter
uma revelação sobre a pobreza
que testemunho diariamente.
Mas não tenho dúvida de que
esse é o tipo do filme capaz de
despertar a solidariedade de
platéias politicamente corretas
daqui e, em especial, da Europa.
Gente que aceitará voluntariamente o contrato da narrativa
que retrataria a "verdadeira"
vida nessa nossa metrópole do
Terceiro Mundo, já transformada em clichê cult em círculos gringos.
De prático, o filme fez-me
(eu, que nunca fui assaltado em
São Paulo) prestar atenção na
minha mochila. Apesar dos
alertas, ainda costumava deixá-la sobre o banco ao lado.
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