São Paulo, sábado, 21 de outubro de 2000

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"LUA CHEIA"
Espanhol rasga com honra cartilha do romance policial

EDSON FRANCO
EDITOR DO TV FOLHA

Com certeza , o escritor espanhol Antonio Muñoz Molina, 44, leu a cartilha do bom romance policial. Leu e rasgou. E como testamento dessa sua relação com os autores que o precederam no estilo, escreveu "Lua Cheia", que a Companhia das Letras lança agora no Brasil.
Estão ali os elementos da superfície de todas as tramas policialescas, de Agatha Christie a Lawrence Block, passando por Raymond Chandler e Dashiell Hammett. O crime, o investigador implacável, o quebra-cabeças aparentemente insolúvel, os desvios e atalhos guiados pela paixão ou pelo sexo.
Muñoz Molina vai muito mais fundo, mais exatamente na parte do cérebro (ou da alma) em que os personagens -ordinários, sob qualquer análise- armazenam suas memórias mais inconfessáveis. Justamente aquelas que acabam ditando boa parte das ações.
E, por falar em ação, ela é relegada à função de pano de fundo em "Lua Cheia". Uma ousadia, em se tratando de um livro que vai ter como vizinhos de prateleira obras muito mais recheadas de sangue, tiros e perseguições. Mas nem mesmo o mais renitente entusiasta de tramas mais tensas do que densas vai deixar de admirar a maneira como o autor visita os lados obscuros dos personagens.
Muito mais do que revelá-los, Muñoz Molina os constrói, pedaço por pedaço. Em vez de jogar sujo e guardar na manga o ás da resolução do caso no último capítulo, o autor começa a vasculhar a psique do assassino ainda no primeiro terço da obra.
Chega-se ao fim do livro sem saber o nome do assassino. Mas que falta isso faz? A mesquinharia na revelação desse dado passageiro é compensada pela generosidade com que são expostas informações mais endoscópicas. Assim, mesmo que não saibamos os nomes de um ou outro personagem, sabemos como eles funcionam.
Não, para manter a atenção do seu leitor, Muñoz Molina não apela para o recurso fácil do voyeurismo psicológico. Não é a curiosidade pelo pensamento alheio que faz as páginas da obra se sucederem com fluidez quase incontrolável, mas sim a importância que é dada ao aparentemente comum, ao universal que salta das migalhas da individualidade.
Isso aproxima a trama do cotidiano. Estamos diante de um assassinato e suas inevitáveis decorrências, mas as emoções expostas ali podem ser experimentadas no trânsito ou numa reunião de trabalho. Por essas e outras, "Lua Cheia" é inesquecível.
Embora seja o que o livro tem de menos importante, eis a trama: um policial basco em fim de carreira vai a uma cidadezinha no sul da Espanha para resolver o caso de uma menina que foi violentada e morta quando estava a caminho de uma papelaria para comprar material escolar.
O maior mérito de Muñoz Molina é pegar uma premissa tão estreita e fazer o mundo girar em torno dela.

Lua Cheia
Plenilunio
    
Autor: Antonio Muñoz Molina
Tradução: Sérgio Molina
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 34,50 (416 págs.)



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