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CARLOS HEITOR CONY
Prazo de validade vencido
Nunca é tarde para se
aprender alguma coisa, ainda que inútil, uma coisa que de
nada nos serve. Outro dia, num
congresso sobre problemas do tráfego, fiquei sabendo que os capacetes protetores da cabeça dos
motoqueiros têm prazo de validade; de nada valem, nada protegem, se estão vencidos. Há que os
renovar ou os substituir por outros.
Essa me pegou desprevenido.
Pensava que somente remédios,
alimentos e extintores de incêndio tivessem uma data precisa para perderem sua eficácia. Nunca
usei um capacete de motoqueiro,
nada tenho contra eles -Deus é
testemunha disso-, mas o dia
em que qualquer um me encontrar com um deles na cabeça pode
chamar o hospício mais próximo:
estou além da razão, no território
mágico da loucura.
Meditando nos capacetes dos
motoqueiros, que nunca imaginava perecíveis como a manteiga,
as lagostas e os antibióticos, cheguei à conclusão de que os escândalos na política, na economia,
na vida doméstica, no futebol e
na ecologia são também condicionados a um prazo de validade
inexorável. O problema é que, ao
contrário dos remédios e dos alimentos, não há na embalagem
dos escândalos a etiqueta correspondente à validade do produto.
Os escândalos acontecem, sempre aconteceram na história humana e acontecerão até que o
planeta, expirado o prazo de sua
validade, estoure como uma bolha ou seja tragado por um buraco negro -este sim, parece não
ter prazo algum para perder sua
força e sua malignidade.
Não estou me referindo precisamente aos recentes escândalos na
vida pública nacional. Eles entram de cambulhada na vida provisória dos capacetes dos motoqueiros e dos frutos do mar. Os escândalos têm uma vida útil, embora sejam inúteis por definição e
natureza. Nada se aprende com
eles, a não ser que, sendo perecíveis, são constantemente renovados por forças misteriosas nas entranhas da sociedade. Dão até a
impressão de que, sem eles, a sociedade atingiria seu próprio prazo de validade e deixaria de ser
sociedade, passando a ser uma
coisa abstrata, sem sentido. (Isso
não quer dizer que a sociedade tenha um sentido preciso).
Evidente que houve sociedades
que venceram o prazo de sua validade e sumiram da história, não
exatamente por causa dos seus escândalos, eles continuaram nas
sociedades que se formaram e que
em seu devido tempo foram para
o espaço. Daí um apressado poderia tirar a conclusão de que, sem
escândalos, não há sociedade.
Ela, sociedade, sobrevive na medida em que é capaz de absorver
os escândalos que gera.
Indo direto ao assunto: há meses fomos sacudidos com os escândalos no bojo da vida pública nacional. Vestais da política, como o
PT, e candidato a vestal, como o
atual governo, foram tragados
por uma sucessão de escândalos
que ainda estão sendo apurados,
fragmentariamente, mas de tal
forma que o núcleo parece estar
atingindo seu prazo de validade.
Mais um pouco, dois ou três meses, coincidentes com o bimbalhar
dos sinos do Natal, com os fogos
de artifício do Réveillon, e começaremos ano novo, vida nova,
com novos escândalos, novas denúncias, novos corruptos e a velha fadiga de tentar endireitar as
coisas. Mesmo porque, segundo
leio em nutridos artigos dos jornais, de nada adianta endireitar
as coisas.
A culpa dos escândalos da esquerda pertence à direita, donde
se conclui que as coisas já estão
endireitadas, de nada adianta
"endireitar" os escândalos.
A alternativa seria esquerdizar
a crise, esquerdizar os escândalos,
desde que se considere a esquerda
a referência única de tudo o que é
moral e proveitoso para a humanidade. Bem verdade que regimes
de esquerda bem-estruturados e
eficientemente articulados, como
o socialismo soviético, também
expiraram o prazo de validade.
Tiveram sua eficácia no bem e no
mal, fizeram heróis e vilões, santos e vítimas, ainda não foram
substituídos por um produto confiável e com validade mais longa
e eficaz.
Longo e eficaz é o ensinamento
do Eclesiastes, que venho citando
com exagerada freqüência, a propósito do que vem acontecendo e
do que sempre aconteceu: há tempo para isso e tempo para aquilo.
Para plantar e colher, para rir e
chorar, para ir e não ir, para tudo
e para nada.
Atravessamos um tempo que
nos envergonha, mas não percamos tempo em chorar sobre nossos pecados. Eles passarão, não
serão perdoados, mas esquecidos,
o que dá na mesma. Logo ocuparemos nosso "grid" de largada
com outros pecados e escândalos.
A conclusão da divagação que o
cronista acaba de fazer é que o
tempo de nos escandalizarmos já
expirou -embora os escândalos
continuem-, os velhos por terem
expirado sua validade, os novos
porque ainda não estão no mercado da oferta e da procura.
Outro dia, falando das manias
cultivadas pelo carioca comum,
lembrei que uma de suas virtudes
é não pagar contas velhas e deixar que as contas novas se tornem
velhas. De alguma forma, parece
até um conselho que o Eclesiastes
esqueceu de dar. É imperdoável
chegar à conclusão tão pessimista: há tempo de cobrar escândalos
e tempo de esquecê-los. É o que está começando a acontecer.
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