São Paulo, sexta-feira, 21 de outubro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Prazo de validade vencido

Nunca é tarde para se aprender alguma coisa, ainda que inútil, uma coisa que de nada nos serve. Outro dia, num congresso sobre problemas do tráfego, fiquei sabendo que os capacetes protetores da cabeça dos motoqueiros têm prazo de validade; de nada valem, nada protegem, se estão vencidos. Há que os renovar ou os substituir por outros.
Essa me pegou desprevenido. Pensava que somente remédios, alimentos e extintores de incêndio tivessem uma data precisa para perderem sua eficácia. Nunca usei um capacete de motoqueiro, nada tenho contra eles -Deus é testemunha disso-, mas o dia em que qualquer um me encontrar com um deles na cabeça pode chamar o hospício mais próximo: estou além da razão, no território mágico da loucura.
Meditando nos capacetes dos motoqueiros, que nunca imaginava perecíveis como a manteiga, as lagostas e os antibióticos, cheguei à conclusão de que os escândalos na política, na economia, na vida doméstica, no futebol e na ecologia são também condicionados a um prazo de validade inexorável. O problema é que, ao contrário dos remédios e dos alimentos, não há na embalagem dos escândalos a etiqueta correspondente à validade do produto.
Os escândalos acontecem, sempre aconteceram na história humana e acontecerão até que o planeta, expirado o prazo de sua validade, estoure como uma bolha ou seja tragado por um buraco negro -este sim, parece não ter prazo algum para perder sua força e sua malignidade.
Não estou me referindo precisamente aos recentes escândalos na vida pública nacional. Eles entram de cambulhada na vida provisória dos capacetes dos motoqueiros e dos frutos do mar. Os escândalos têm uma vida útil, embora sejam inúteis por definição e natureza. Nada se aprende com eles, a não ser que, sendo perecíveis, são constantemente renovados por forças misteriosas nas entranhas da sociedade. Dão até a impressão de que, sem eles, a sociedade atingiria seu próprio prazo de validade e deixaria de ser sociedade, passando a ser uma coisa abstrata, sem sentido. (Isso não quer dizer que a sociedade tenha um sentido preciso).
Evidente que houve sociedades que venceram o prazo de sua validade e sumiram da história, não exatamente por causa dos seus escândalos, eles continuaram nas sociedades que se formaram e que em seu devido tempo foram para o espaço. Daí um apressado poderia tirar a conclusão de que, sem escândalos, não há sociedade. Ela, sociedade, sobrevive na medida em que é capaz de absorver os escândalos que gera.
Indo direto ao assunto: há meses fomos sacudidos com os escândalos no bojo da vida pública nacional. Vestais da política, como o PT, e candidato a vestal, como o atual governo, foram tragados por uma sucessão de escândalos que ainda estão sendo apurados, fragmentariamente, mas de tal forma que o núcleo parece estar atingindo seu prazo de validade. Mais um pouco, dois ou três meses, coincidentes com o bimbalhar dos sinos do Natal, com os fogos de artifício do Réveillon, e começaremos ano novo, vida nova, com novos escândalos, novas denúncias, novos corruptos e a velha fadiga de tentar endireitar as coisas. Mesmo porque, segundo leio em nutridos artigos dos jornais, de nada adianta endireitar as coisas.
A culpa dos escândalos da esquerda pertence à direita, donde se conclui que as coisas já estão endireitadas, de nada adianta "endireitar" os escândalos.
A alternativa seria esquerdizar a crise, esquerdizar os escândalos, desde que se considere a esquerda a referência única de tudo o que é moral e proveitoso para a humanidade. Bem verdade que regimes de esquerda bem-estruturados e eficientemente articulados, como o socialismo soviético, também expiraram o prazo de validade. Tiveram sua eficácia no bem e no mal, fizeram heróis e vilões, santos e vítimas, ainda não foram substituídos por um produto confiável e com validade mais longa e eficaz.
Longo e eficaz é o ensinamento do Eclesiastes, que venho citando com exagerada freqüência, a propósito do que vem acontecendo e do que sempre aconteceu: há tempo para isso e tempo para aquilo. Para plantar e colher, para rir e chorar, para ir e não ir, para tudo e para nada.
Atravessamos um tempo que nos envergonha, mas não percamos tempo em chorar sobre nossos pecados. Eles passarão, não serão perdoados, mas esquecidos, o que dá na mesma. Logo ocuparemos nosso "grid" de largada com outros pecados e escândalos. A conclusão da divagação que o cronista acaba de fazer é que o tempo de nos escandalizarmos já expirou -embora os escândalos continuem-, os velhos por terem expirado sua validade, os novos porque ainda não estão no mercado da oferta e da procura.
Outro dia, falando das manias cultivadas pelo carioca comum, lembrei que uma de suas virtudes é não pagar contas velhas e deixar que as contas novas se tornem velhas. De alguma forma, parece até um conselho que o Eclesiastes esqueceu de dar. É imperdoável chegar à conclusão tão pessimista: há tempo de cobrar escândalos e tempo de esquecê-los. É o que está começando a acontecer.


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