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FERNANDO GABEIRA
Dossiê, mentiras e o amanhã
Os menos preparados interpretarão a vitória como carta branca para instaurar a cleptocracia
QUANDO LEIO sobre as perspectivas na península da Coréia, confesso que sinto medo. Um conflito militar ali, como
acentua Robert D. Kaplan, vai fazer
com que as guerras do Iraque e Afeganistão pareçam algo bem limpo.
Mas, se o potencial de guerra na
península é assustador, é também
um consolo quando examinamos a
guerra deflagrada no segundo turno
da eleição presidencial brasileira. A
única vítima até o momento é a vítima de sempre, a verdade. A única
perda, um pedaço do dedo de uma
petista no Rio.
Não quero insinuar que, em outras eleições, tenham dito a verdade.
Tudo o que podemos esperar é que
as pessoas mintam sobre os temas
interessantes e não sobre falsos problemas, como o da privatização de
empresas.
Desde o princípio desse processo,
constatando que o Brasil está dentro
do mundo e o mundo dentro do Brasil, tinha uma esperança de que fosse discutido o tema da competitividade internacional.
O que nos torna menos ou mais
competitivos, num irreversível processo de globalização?
As respostas para essa pergunta
podem ser achadas aqui e ali, em
fragmentos do discurso dos candidatos. Mas era preciso demarcar um
campo, ainda que limitado, de concordância e uma promessa de ação
comum nesse tema que envolve o
Brasil no mundo e depende de vontade nacional.
No meio do caminho, uma pedra:
a tentativa de compra do dossiê, o
perigo da virada anunciada pelo segundo turno e a guerra psicológica
que se sucedeu.
Duas questões parecem-me essenciais para se retomar um curso
menos inquietante para o futuro. As
regras do jogo, no inevitável processo de apuração, julgamento e punição dos responsáveis. Essas regras
pressupõem, de um lado, não sabotar as investigações; de outro, respeitar o direito de defesa.
A segunda questão é mais delicada. Vamos parar tudo para resolver o
problema da compra do dossiê ou
combinaremos esse trabalho com a
tentativa de solucionar questões urgentes que nos esperam, como as reformas política e tributária, por
exemplo?
Não tenho resposta para isso. Mas
acredito que a solução adequada do
problema da compra do dossiê seja
prioritária. Só ela poderia derrubar
o muro de desconfiança que se ergueu entre os principais atores da
política nacional.
Enquanto houver esse muro, governo e oposição tendem a conjugar
os verbos que dominam seu vocabulário: "tratorar" e obstruir.
Embora infinitamente melhores
que os da Coréia, os sintomas não
são bons. Os jornalistas chapa-branca falam em lista de inimigos a serem perseguidos na própria imprensa. Métodos autoritários são usados
para proteger os acusados dos avanços da investigação.
Tudo isso pode nos levar a uma
cultura de resistência, a um exame
de como se moveram os intelectuais
cubanos, os movimentos do leste
europeu e, mais próximos daqui, os
jornalistas da Venezuela.
Os menos preparados vão interpretar a vitória nas atuais circunstâncias como carta branca para instaurar uma cleptocracia no Brasil,
sustentada por truculência contra a
mídia e opositores.
Atribuí erradamente a Bob Marley um verso de Jimmy Cliff: quanto
mais pesado vierem, mais pesado
cairão. Permanece válido.
Digo essas coisas também com experiência pessoal. O governo inventou que tinha denunciado uma operação de venda de ações a Freud Godoy, que havia violado seu segredo
bancário.
Lula deu uma entrevista ao "Globo" e afirmou que a notícia parecia
ter partido de mim. Tudo bem, pois
nem tudo que parece é. Numa segunda resposta, magicamente, o que
apenas parecia transformou-se em
realidade.
Macaco velho não se deixa impressionar por ameaças. Mas também não se apega ao confronto, como se fosse o objetivo máximo. Tudo que melhorar a capacidade do
Brasil competir num mundo que se
move com rapidez deveria ser objeto de acordo.
Jorge Luis Borges descreve uma
situação que explica bem essa fase.
Um homem entra numa sala e alguém lhe atira um copo. Ele responde: tudo bem, agora vamos aos argumentos. Passado o período de acusações mútuas, chegará a hora de
apresentar argumentos.
Vamos torcer por um futuro mais
construtivo e, no caso da Coréia, rezar e dar nossa minúscula contribuição para que não haja guerra, mas
uma ampla ação humanitária na
passagem do regime.
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