São Paulo, sábado, 21 de outubro de 2006

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FERNANDO GABEIRA

Dossiê, mentiras e o amanhã

Os menos preparados interpretarão a vitória como carta branca para instaurar a cleptocracia

QUANDO LEIO sobre as perspectivas na península da Coréia, confesso que sinto medo. Um conflito militar ali, como acentua Robert D. Kaplan, vai fazer com que as guerras do Iraque e Afeganistão pareçam algo bem limpo.
Mas, se o potencial de guerra na península é assustador, é também um consolo quando examinamos a guerra deflagrada no segundo turno da eleição presidencial brasileira. A única vítima até o momento é a vítima de sempre, a verdade. A única perda, um pedaço do dedo de uma petista no Rio.
Não quero insinuar que, em outras eleições, tenham dito a verdade. Tudo o que podemos esperar é que as pessoas mintam sobre os temas interessantes e não sobre falsos problemas, como o da privatização de empresas.
Desde o princípio desse processo, constatando que o Brasil está dentro do mundo e o mundo dentro do Brasil, tinha uma esperança de que fosse discutido o tema da competitividade internacional.
O que nos torna menos ou mais competitivos, num irreversível processo de globalização?
As respostas para essa pergunta podem ser achadas aqui e ali, em fragmentos do discurso dos candidatos. Mas era preciso demarcar um campo, ainda que limitado, de concordância e uma promessa de ação comum nesse tema que envolve o Brasil no mundo e depende de vontade nacional.
No meio do caminho, uma pedra: a tentativa de compra do dossiê, o perigo da virada anunciada pelo segundo turno e a guerra psicológica que se sucedeu.
Duas questões parecem-me essenciais para se retomar um curso menos inquietante para o futuro. As regras do jogo, no inevitável processo de apuração, julgamento e punição dos responsáveis. Essas regras pressupõem, de um lado, não sabotar as investigações; de outro, respeitar o direito de defesa.
A segunda questão é mais delicada. Vamos parar tudo para resolver o problema da compra do dossiê ou combinaremos esse trabalho com a tentativa de solucionar questões urgentes que nos esperam, como as reformas política e tributária, por exemplo?
Não tenho resposta para isso. Mas acredito que a solução adequada do problema da compra do dossiê seja prioritária. Só ela poderia derrubar o muro de desconfiança que se ergueu entre os principais atores da política nacional.
Enquanto houver esse muro, governo e oposição tendem a conjugar os verbos que dominam seu vocabulário: "tratorar" e obstruir.
Embora infinitamente melhores que os da Coréia, os sintomas não são bons. Os jornalistas chapa-branca falam em lista de inimigos a serem perseguidos na própria imprensa. Métodos autoritários são usados para proteger os acusados dos avanços da investigação.
Tudo isso pode nos levar a uma cultura de resistência, a um exame de como se moveram os intelectuais cubanos, os movimentos do leste europeu e, mais próximos daqui, os jornalistas da Venezuela.
Os menos preparados vão interpretar a vitória nas atuais circunstâncias como carta branca para instaurar uma cleptocracia no Brasil, sustentada por truculência contra a mídia e opositores.
Atribuí erradamente a Bob Marley um verso de Jimmy Cliff: quanto mais pesado vierem, mais pesado cairão. Permanece válido.
Digo essas coisas também com experiência pessoal. O governo inventou que tinha denunciado uma operação de venda de ações a Freud Godoy, que havia violado seu segredo bancário.
Lula deu uma entrevista ao "Globo" e afirmou que a notícia parecia ter partido de mim. Tudo bem, pois nem tudo que parece é. Numa segunda resposta, magicamente, o que apenas parecia transformou-se em realidade.
Macaco velho não se deixa impressionar por ameaças. Mas também não se apega ao confronto, como se fosse o objetivo máximo. Tudo que melhorar a capacidade do Brasil competir num mundo que se move com rapidez deveria ser objeto de acordo.
Jorge Luis Borges descreve uma situação que explica bem essa fase. Um homem entra numa sala e alguém lhe atira um copo. Ele responde: tudo bem, agora vamos aos argumentos. Passado o período de acusações mútuas, chegará a hora de apresentar argumentos.
Vamos torcer por um futuro mais construtivo e, no caso da Coréia, rezar e dar nossa minúscula contribuição para que não haja guerra, mas uma ampla ação humanitária na passagem do regime.


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