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FERREIRA GULLAR
Certa noite, no Opinião
Paulo Autran, que não tinha atuação política, tornou-se um grande adversário da ditadura
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PAULO AUTRAN desempenhou o
papel principal da peça "Liberdade Liberdade", que o
Grupo Opinião montou, em 1965,
em seguida ao show "Opinião", que
promovera uma renovação do musical brasileiro, mesclando textos e
canções. Entusiasmados com o êxito do show, Flávio Rangel e Millôr
Fernandes nos propuseram elaborar uma montagem de textos e músicas, cujo tema seria a liberdade.
Vale lembrar que a ditadura militar
mal completara um ano e ainda hesitava em mostrar a verdadeira cara,
mas era preciso agir com cautela.
Chamar Paulo Autran para protagonizar o espetáculo impunha respeito, mesmo porque ele não tinha
atuação política.
O espetáculo estreou com casa
cheia, indicando que íamos repetir o
êxito de público do anterior. Como
os textos citados em cena, em defesa
da liberdade, incluíam de Sócrates a
Martin Luther King, passando por
Voltaire e Lincoln, a censura não se
atreveu a cortar nada, nem mesmo
algumas piadas de Millôr, como uma
que era dita com toda a seriedade
por Autran: "Se a ditadura continuar
permitindo que se montem peças
como esta, o país vai terminar caindo numa democracia".
Mas, enquanto não caía, nem tudo
eram risos. Assim foi que, certa tarde, recebo um telefonema de nossa
companheira Pichín Plat, a quem
coube, naquele dia, de acordo com
rodízio que estabelecemos, cuidar
da bilheteria. Avisou-me que um sujeito mal-encarado comprara 40 ingressos e exigiu que fossem todos
juntos. Naquela noite, o vice-governador ia ver a peça. Telefonei para o
jornalista Hélio Fernandes, irmão
de Millôr e diretor da "Tribuna da
Imprensa", que pediu a proteção da
polícia. Antes do espetáculo reuni-me com o grupo e decidimos nada
dizer aos atores para não alarmá-los.
Mal começado o espetáculo, chegaram os policiais -que tanto temíamos- para nos proteger. Uma
rápida inspeção revelou a presença
de uma pequena bomba artesanal,
no banheiro do teatro, o que aumentou nossa preocupação. O que iria
acontecer?
O primeiro ato transcorreu sem
nenhum atropelo, mas não tirávamos os olhos do trecho da platéia
ocupado pelos 40 inimigos. (Quarenta parece um número amaldiçoado: além dos 40 ladrões, houve
recentemente os 40 aloprados...). A
platéia se divertia, ora tocada pela
fala irônica de Marco Antônio, em
que denuncia a traição de Brutus,
assassino de Júlio César, e que Paulo
Autran interpretava magnificamente; ora rindo das surpresas do texto,
quando Vianinha, bem sério, exige
que cada espectador tome uma posição, seja de direita, de esquerda ou
de centro, mas que, tomada, fique
nela, "porque senão, companheiros,
como as cadeiras do teatro rangem
muito, ninguém vai ouvir nada!".
No intervalo, mal conseguíamos
esconder dos atores nossa preocupação. Nara Leão, depois de tomar
um gole de refrigerante, fitou-me
sorrindo: "Por que vocês hoje estão
sérios e mudos?", indagou. "Impressão sua", respondi. Começado o segundo ato, a expectativa aumentou.
A peça, a certa altura, aludia ao caso do poeta soviético Joseph
Brodsky, que fora condenado a cinco anos de trabalhos forçados por
desrespeitar as normas do regime.
Logo em seguida, Paulo Autran falava do soldado norte-americano Eddie Slovik, que se negara a entrar em
combate e estava sendo julgado como desertor. A cena é então interrompida por uma voz da platéia (um
dos 40) que grita: "Cala a boca, comunista!".
Paulo, surpreendido, hesita, olha
na direção de onde veio o grito, e logo outros brados se ouvem: "Fora,
comunista!". Ele faz que não escuta
e continua a cena: "Conhece o princípio militar segundo o qual um cidadão fisicamente capaz que não luta por seu país não merece viver?".
- Fora, comunista!
Foi aí então que a maioria da platéia reagiu, começou a bater palmas
e as palmas, num crescendo, fizeram
calar a voz dos 40 provocadores. O
espetáculo transcorreu tenso, mas
sem interrupções até o fim. Quando
o público começou a se retirar, os
policiais cercaram os agitadores e
passaram a revistá-los: alguns escondiam cassetetes sob o paletó, outros traziam revólveres e manoplas.
Depois de desarmados, foram levados para fora do teatro e, na rua, defrontaram-se com um fotógrafo da
"Tribuna da Imprensa", que os flagrou. O retrato do chefe deles saiu
no jornal, no dia seguinte: era um
oficial da reserva da Aeronáutica.
Para encerrar a noite, convidamos
Paulo Autran a tomar um chope conosco na Fiorentina. Ele não pôde ir,
mas, depois desse episódio, tornou-se um firme adversário da ditadura
militar.
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