São Paulo, quarta-feira, 21 de outubro de 2009

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MARCELO COELHO

Tempo de pipocas


Tarantino expressa com maestria a sensação de que tudo dura o tempo da pipoca no cinema


POUCAS VEZES saí tão satisfeito do cinema. "Bastardos Inglórios", de Quentin Tarantino, é um filme que traz tudo o que o público quer: grandes personagens, reviravoltas na história, vingança, violência, farsa, mulheres, justiça.
Ao mesmo tempo, o diretor não se rebaixa a simplesmente atender ao "público médio", seguindo mecanicamente as prescrições do mercado, dos manuais de roteiro ou das pesquisas de opinião.
Tarantino parece ter dirigido o filme com o mesmo espírito de seu protagonista, o tenente americano Aldo Raine (Brad Pitt). Ou seja, com a sensação de que nada o impede de fazer o que quiser.
Raine lidera um grupo de soldados americanos encarregado de aterrorizar nazistas na França, durante a ocupação. Vale qualquer coisa: colecionar escalpos de alemães, à moda apache, arrebentar cabeças com um bastão de beisebol, tatuar testas a golpes de facão.
O lema do personagem de Brad Pitt poderia ser uma frase adaptada de Dostoiévski: se o nazismo existe, então tudo é permitido. E, para Tarantino, se o cinema existe, tudo é permitido também.
"Bastardos Inglórios" é, em boa medida, um filme para cinéfilos. De Walt Disney (numa paródia sinistra de "Cinderela") a Glauber Rocha (a câmera dando voltas ensandecidas em torno de um casal), imagino existir matéria para um livro inteiro analisando as citações do diretor.
Sem contar que, entre os personagens da história, há uma estrela do cinema alemão, um oficial britânico especialista em cinema, uma dona de cinema, um projecionista de cinema... É numa sala de cinema que transcorre o clímax da história.
Com algumas exceções, entretanto, tendo a achar meio chatas as homenagens que o cinema costuma prestar a si mesmo.
O grande feito de Tarantino, a meu ver, é o de ter feito um filme coerente e bastante longo (duas horas e meia), a partir da técnica de quem conta uma piada rápida e eficiente, de curto fôlego.
Em seu artigo para o Mais! deste domingo, Jorge Coli notou acertadamente que não há muito suspense em "Bastardos Inglórios". É que no suspense o espectador já sabe o que vai (ou pode) acontecer: o seu único problema é que não sabe quando.
Verdade que, em alguns lances da história, Tarantino "suspende" o desenlace. Inimigos ficam vários minutos apontando revólveres uns para os outros, enquanto continuam um diálogo improvável. O tempo se estica, mas não é o suspense clássico. O espectador não tem ideia do que possa acontecer.
O tempo se estica, também, em ações absolutamente previsíveis. Um matador americano é chamado a sair de seu esconderijo para executar o oficial alemão. Ele demora para aparecer. Mas Tarantino não está jogando diretamente com as expectativas psicológicas do público. É mais o prazer de um contador de piadas, que domina o "timing" da história, mas não pensa em criar ansiedade na audiência.
Do mesmo modo, seus personagens não têm psicologia nenhuma. Cada um exibe total certeza a respeito das próprias motivações. No longa-metragem, a dúvida não ocupa nenhum espaço "interior"; está colocada apenas no risco extremo que acompanha cada situação concreta.
Deriva daí, provavelmente, a "satisfação" do espectador. "Bastardos Inglórios" não é um filme que se presta a um julgamento de conjunto (embora seja isso o que eu esteja tentando fazer aqui). Quem sai da sala de projeção não precisa "rebobinar" o filme na memória para aí então avaliar o seu significado. Tudo se resolve, em mais de um sentido, dentro do próprio cinema.
Por mais que se diga que a vingança é um prato que se serve frio, a lógica do filme é a do imediatismo. Vemos a sucessão de uma "hora H" atrás da outra; por isso mesmo, o que de fato aconteceu na Segunda Guerra é alegremente descartado pelo diretor. Vigora no filme uma simultaneidade total -a ponto de não apenas um, mas dois atentados contra Hitler estarem marcados para acontecer ao mesmo tempo.
Nada mais apropriado a uma situação em que, afinal, futuro e passado assumem uma aparência ilusória no cotidiano.
Hoje em dia, prazeres imediatos e traumas sempre recorrentes nos deixam, por assim dizer, "presos na poltrona". Tarantino expressa com maestria essa sensação: a de que tudo é contemporâneo, e dura o tempo de uma pipoca no cinema.

coelhofsp@uol.com.br


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