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NELSON ASCHER
Johnny não vai à guerra
Uma singularidade biográfica que, para a imensa maioria de meus compatriotas seria, se
tanto, uma constatação trivial,
tão trivial, aliás, que nem sequer
mereceria menção, é, no meu caso, algo que, quando penso no assunto (e confesso que o faço amiúde), não cessa de me surpreender.
Trata-se do seguinte: sou o primeiro Ascher de minha linhagem
(e também Glanz, nome de solteira de minha mãe, Klein, nome da
família de minha avó materna; já
meus avós paternos, ambos Ascher, eram primos-irmãos, o que,
para os investigadores das conseqüências nefastas da endogamia,
quem sabe ajudará a esclarecer
uma coisinha ou outra), que nunca esteve num campo de batalha.
Quero dizer: jamais me coloquei ou fui posto numa situação
na qual tivesse de escolher entre
duas e apenas duas opções, a saber, matar ou ser morto -e fosse,
ademais, obrigado a tomar a decisão cabível durante uma subdivisão tão minúscula de um segundo que, sem tempo para grandes
(ou mesmo ínfimas) especulações
filosóficas, metafísicas, éticas, o
resultado seria ditado, sobretudo,
por reflexos previamente adquiridos e pela sorte.
Não que eu não tenha tido o
privilégio de experimentar pessoalmente uma atmosfera saturada de cápsulas aladas de chumbo (ou de metais diferentes, enfim, aquilo que, com inspiração
invejável, João Cabral de Melo
Neto batizou de "ave-bala").
Aconteceu-me de me encontrar (e
isso há mais de duas décadas, não
no Rio de Janeiro, mas aqui, em
minha São Paulo natal) no âmbito de três tiroteios.
Nas três ocasiões eu estava num
carro, e a primeira indicação de
algo estranho no ar veio com a
percepção de que, em horas e locais nos quais o trânsito deveria
fluir tranqüilo, havia um engarrafamento inexplicável. O segundo indício era invariavelmente
visual: pedestres ao redor agachados ou rastejando cuidadosos em
busca de lugares protegidos. Só
depois, procurando anormalidades com a audição devidamente
alertada, é que percebi os estampidos.
Ao contrário do que os filmes
nos habituaram a esperar nessas
circunstâncias, não se ouvia nada
que se assemelhasse a ribombos
ensurdecedores ou ao zunido de
projéteis. Se cheguei a ouvir ruídos dessa última natureza, foi
sempre no decorrer de comemorações coroadas com fogos de artifício. Quanto aos tiros de verdade, esses se assemelhavam mais à
flatulência de filhotes anêmicos
de camundongos. Nem assim
eram menos letais, naturalmente,
nem é de todo improvável que sua
conspícua (e traiçoeira) irrelevância sonora os tornasse ainda
mais perigosos. Pensando bem (e
caso as outras variáveis não variem), as chances de morrer de
um tiro que se levou são maiores
numa metrópole como a nossa do
que num campo de batalha.
Para começar, os soldados envolvidos numa guerra estão conscientes de que serão alvejados. Se
pertencem a um Exército competente e profissional, eles têm à
mão enfermeiros e médicos cuja
rotina é lidar precisamente com
emergências similares. Eles dispõem também dos meios de
transporte (ambulâncias, helicópteros etc.) preparados para
lhes fornecer os primeiros socorros e levá-los rapidamente a hospitais especializados. Por sua vez,
um cidadão cujo caminho urbano se cruze com a trajetória da
"ave-bala" perdida (ou melhor,
achada), sucumbirá a uma hemorragia interna perfeitamente
estancável antes que sua ambulância consiga se desvencilhar do
congestionamento provocado pelo próprio tiroteio.
Mas estou (como se não fosse esta a minha intenção) divagando.
Minha idéia era a de usar um
exemplo pessoal para ilustrar o
que talvez seja uma regra geral: a
de que tão logo nos acostumamos
a uma situação que qualquer
exame histórico demonstra ser a
exceção, passamos, otimistas, a
tomá-la como se fosse a norma
eterna e imutável.
Vejamos. Graças a outra singularidade biográfica, ou seja, por
ter cursado quase um ano de medicina, eu tinha, na primeira metade dos anos 80, amigos que se
ocupavam então de pacientes que
sofriam de uma nova e misteriosa
doença. Conforme principiavam
a ser justapostas, as peças do quebra-cabeça mal faziam sentido,
pois, entre os grupos inicialmente
atingidos, estavam os haitianos.
Por que os haitianos? Foi preciso
decifrar muito da enfermidade
antes que se descobrisse que sua
representação exagerada naquele
estágio da pandemia não passava
de um acidente no percurso que
espalhou o vírus pelo planeta.
Naqueles dias, porém, a eclosão
da Aids parecia não apenas o
Apocalipse materializado, como
um autêntico equívoco histórico,
porque, depois do surgimento dos
antibióticos, nenhum adulto saudável e bem-nutrido julgava possível morrer de uma moléstia infecciosa que evocava as antigas
pestilências. As pessoas haviam se
esquecido de que, na história da
humanidade, esta era a regra,
não a exceção. E ignoravam que
tinham tido a sorte de nascer na
época de uma breve trégua na
prolongada guerra entre homens
e microorganismos. Outras quiçá
acreditavam que as recentes vitórias científicas eram estratégicas,
não táticas, e que nossos microinimigos não ousariam revidar.
Se há uma moral a se extrair
das observações acima é a de que
nem conquistas indiscutíveis, como as decorrentes do desenvolvimento dos antibióticos, são definitivas. E o que vale para as ciências aplicadas, aplica-se igualmente, ou de forma pior, à política. A paz e a segurança individual, a produção de riquezas e o
respeito aos direitos humanos,
nada disso nasce em árvores. Frutos que são de um árduo empenho coletivo, considerá-los constantes naturais ou irreversíveis
traz consigo o risco de que se evaporem num abrir e fechar de
olhos.
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