São Paulo, segunda-feira, 21 de novembro de 2005

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NELSON ASCHER

Johnny não vai à guerra

Uma singularidade biográfica que, para a imensa maioria de meus compatriotas seria, se tanto, uma constatação trivial, tão trivial, aliás, que nem sequer mereceria menção, é, no meu caso, algo que, quando penso no assunto (e confesso que o faço amiúde), não cessa de me surpreender. Trata-se do seguinte: sou o primeiro Ascher de minha linhagem (e também Glanz, nome de solteira de minha mãe, Klein, nome da família de minha avó materna; já meus avós paternos, ambos Ascher, eram primos-irmãos, o que, para os investigadores das conseqüências nefastas da endogamia, quem sabe ajudará a esclarecer uma coisinha ou outra), que nunca esteve num campo de batalha.
Quero dizer: jamais me coloquei ou fui posto numa situação na qual tivesse de escolher entre duas e apenas duas opções, a saber, matar ou ser morto -e fosse, ademais, obrigado a tomar a decisão cabível durante uma subdivisão tão minúscula de um segundo que, sem tempo para grandes (ou mesmo ínfimas) especulações filosóficas, metafísicas, éticas, o resultado seria ditado, sobretudo, por reflexos previamente adquiridos e pela sorte.
Não que eu não tenha tido o privilégio de experimentar pessoalmente uma atmosfera saturada de cápsulas aladas de chumbo (ou de metais diferentes, enfim, aquilo que, com inspiração invejável, João Cabral de Melo Neto batizou de "ave-bala"). Aconteceu-me de me encontrar (e isso há mais de duas décadas, não no Rio de Janeiro, mas aqui, em minha São Paulo natal) no âmbito de três tiroteios.
Nas três ocasiões eu estava num carro, e a primeira indicação de algo estranho no ar veio com a percepção de que, em horas e locais nos quais o trânsito deveria fluir tranqüilo, havia um engarrafamento inexplicável. O segundo indício era invariavelmente visual: pedestres ao redor agachados ou rastejando cuidadosos em busca de lugares protegidos. Só depois, procurando anormalidades com a audição devidamente alertada, é que percebi os estampidos.
Ao contrário do que os filmes nos habituaram a esperar nessas circunstâncias, não se ouvia nada que se assemelhasse a ribombos ensurdecedores ou ao zunido de projéteis. Se cheguei a ouvir ruídos dessa última natureza, foi sempre no decorrer de comemorações coroadas com fogos de artifício. Quanto aos tiros de verdade, esses se assemelhavam mais à flatulência de filhotes anêmicos de camundongos. Nem assim eram menos letais, naturalmente, nem é de todo improvável que sua conspícua (e traiçoeira) irrelevância sonora os tornasse ainda mais perigosos. Pensando bem (e caso as outras variáveis não variem), as chances de morrer de um tiro que se levou são maiores numa metrópole como a nossa do que num campo de batalha.
Para começar, os soldados envolvidos numa guerra estão conscientes de que serão alvejados. Se pertencem a um Exército competente e profissional, eles têm à mão enfermeiros e médicos cuja rotina é lidar precisamente com emergências similares. Eles dispõem também dos meios de transporte (ambulâncias, helicópteros etc.) preparados para lhes fornecer os primeiros socorros e levá-los rapidamente a hospitais especializados. Por sua vez, um cidadão cujo caminho urbano se cruze com a trajetória da "ave-bala" perdida (ou melhor, achada), sucumbirá a uma hemorragia interna perfeitamente estancável antes que sua ambulância consiga se desvencilhar do congestionamento provocado pelo próprio tiroteio.
Mas estou (como se não fosse esta a minha intenção) divagando. Minha idéia era a de usar um exemplo pessoal para ilustrar o que talvez seja uma regra geral: a de que tão logo nos acostumamos a uma situação que qualquer exame histórico demonstra ser a exceção, passamos, otimistas, a tomá-la como se fosse a norma eterna e imutável.
Vejamos. Graças a outra singularidade biográfica, ou seja, por ter cursado quase um ano de medicina, eu tinha, na primeira metade dos anos 80, amigos que se ocupavam então de pacientes que sofriam de uma nova e misteriosa doença. Conforme principiavam a ser justapostas, as peças do quebra-cabeça mal faziam sentido, pois, entre os grupos inicialmente atingidos, estavam os haitianos. Por que os haitianos? Foi preciso decifrar muito da enfermidade antes que se descobrisse que sua representação exagerada naquele estágio da pandemia não passava de um acidente no percurso que espalhou o vírus pelo planeta.
Naqueles dias, porém, a eclosão da Aids parecia não apenas o Apocalipse materializado, como um autêntico equívoco histórico, porque, depois do surgimento dos antibióticos, nenhum adulto saudável e bem-nutrido julgava possível morrer de uma moléstia infecciosa que evocava as antigas pestilências. As pessoas haviam se esquecido de que, na história da humanidade, esta era a regra, não a exceção. E ignoravam que tinham tido a sorte de nascer na época de uma breve trégua na prolongada guerra entre homens e microorganismos. Outras quiçá acreditavam que as recentes vitórias científicas eram estratégicas, não táticas, e que nossos microinimigos não ousariam revidar.
Se há uma moral a se extrair das observações acima é a de que nem conquistas indiscutíveis, como as decorrentes do desenvolvimento dos antibióticos, são definitivas. E o que vale para as ciências aplicadas, aplica-se igualmente, ou de forma pior, à política. A paz e a segurança individual, a produção de riquezas e o respeito aos direitos humanos, nada disso nasce em árvores. Frutos que são de um árduo empenho coletivo, considerá-los constantes naturais ou irreversíveis traz consigo o risco de que se evaporem num abrir e fechar de olhos.


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