São Paulo, terça-feira, 21 de novembro de 2006

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Festival de Brasília gira à esquerda

Mostra, que começa hoje, acentua participação de documentários e privilegia revisão da ditadura militar até na ficção

Deputado cassado José Dirceu é aguardado na sessão de encerramento, com filme sobre seqüestro do embaixador Charles Elbrick

Divulgação
Daniel Oliveira e Caio Blat interpretam Frei Betto e Frei Tito, respectivamente, em "Batismo de Sangue", ficção de Helvécio Ratton que estréia no Festival de Brasília


SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

"Nem na República Democrática Alemã participei de um festival tão político como esse", concluiu o cineasta Silvio Tendler, ao ver os concorrentes que teria ao seu lado no 39º Festival de Brasília, aberto hoje. Tendler leva à disputa pelo troféu Candango o filme "Encontro com Milton Santos ou o Mundo Global Visto do Lado de Cá", perfil do geógrafo e pensador baiano morto em 2001 a quem o documentarista define como "arauto antiglobalização".
Entre os seis longas em competição, há outros dois documentários: um ensaio biográfico sobre o escritor José Lins do Rêgo (1901-1957), assinado por Vladimir Carvalho; e um painel do "Jardim Ângela", bairro paulistano detentor de impressionantes índices de miséria e violência, por Evaldo Mocarzel.
Os títulos de ficção também seguem a vertente que o diretor do Festival de Brasília, Fernando Adolfo, classifica de "perfil social e político".

Ditadura
Helvécio Ratton revê a ditadura militar brasileira com "Batismo de Sangue"; o "enfant terrible" Cláudio Assis, depois de vencer em Brasília com "Amarelo Manga" (2002), retorna com "Baixio das Bestas", uma trama sobre exploração sexual. E o estreante Carlos Cortez mostra "Querô", a partir da obra de Plínio Marcos.
"Batismo de Sangue" é baseado em livro homônimo de Frei Betto e recupera a história dos frades beneditinos perseguidos por apoiar a luta de civis armados contra a ditadura militar.
Amigo do presidente Lula, Frei Betto deve ir à sessão oficial. O deputado petista cassado José Dirceu também é aguardado, na noite de encerramento e premiação (28/11).
O festival termina com a sessão hors-concours do documentário "Hércules 2456", de Silvio Da-Rin, sobre o vôo com 15 guerrilheiros (Dirceu entre eles) trocados pela libertação do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em 69.
A disputa começa com "Jardim Ângela", de um diretor que mostra humildade entre os veteranos Tendler e Carvalho. "Estou em terra de gigantes. Eu, que sou documentarista acidental há cinco anos", diz Mocarzel, que deixou o jornalismo em 2001 para fazer filmes como "Do Luto à Luta", a partir da vivência como pai de uma menina com síndrome de Down -Joana, a Clarinha da novela "Páginas da Vida".
O autor de "Jardim Ângela" pode ser um "documentarista acidental", mas já foi premiado em Brasília, com o título de melhor filme pelo voto popular, no ano passado, quando competiu com "À Margem do Concreto", sobre a trajetória dos sem-teto.
O diretor ainda recorda a reação que a platéia do festival, tradicionalmente formada por estudantes da UnB, teve à sessão competitiva de seu longa:
"Aquele é o público mais assustador que existe. Tem um inconformismo, uma generosidade agressiva. Foi uma ovação de indignação. Recarreguei ali minhas baterias para fazer cinema por alguns anos."
O inconformismo dos estudantes/espectadores brasilienses é algo que Vladimir Carvalho conhece desde 1971, ano em que sua carreira se tornou "visceralmente ligada" à história do do festival, segundo afirma.
Naquele ano, Vladimir participaria do festival com "O País de São Saruê". Por pressão do governo militar, o título foi retirado da seleção às vésperas do início da competição e substituído por "Brasil Bom de Bola" (Carlos Niemeyer).
Os estudantes foram para a porta do cinema protestar contra a retirada do filme de Carvalho. O cineasta teve seu definitivo "resgate moral" do episódio em 1979, quando "O País de São Saruê" foi exibido (e premiado) no Festival de Brasília.
Agora, Carvalho comparece com um título de tom afetivo. "Com todo o respeito que tenho ao público, esse é um filme que eu devia a mim mesmo", afirma. A literatura de José Lins do Rêgo, sobretudo a ambientada em Itabaiana (PB), cidade-natal de Carvalho, compõe a memória de infância do diretor, que ouvia as histórias lidas por seu pai à família.
Já Tendler diz que "queria discutir esse processo de globalização" com seu filme em torno de Milton Santos. O primeiro encontro entre os dois ocorreu em 1995, na França, quando Santos falou para um documentário que Tendler preparava sobre o intelectual Josué de Castro (1908-73).
"Ele me deu a entrevista mais difícil de cortar da minha vida. Tudo o que falava era genial. Ficou aquela simpatia no ar e a promessa de fazermos um filme juntos", diz o diretor.
A promessa se cumpriu em 2000, quando Santos estava com a saúde frágil, e Tendler, mesmo sem ter ainda o dinheiro para fazer o filme, veio do Rio a São Paulo, onde gravou o depoimento que está no filme.
A sessão de Tendler deve ter a presença de outro petista, o governador eleito da Bahia, Jacques Wagner, na condição de "baiano amigo".
Ratton, que foi companheiro de Tendler no exílio, nos anos 70, no Chile, também está satisfeito com o resultado de seu longa. "A gente tem sempre um caminhão de vontades quando faz um filme. Às vezes, vai parar no endereço errado. Desta, acho que acertamos", afirma.


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