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Tunga lança caixa que não vai ser vendida
Obra, que comemora 10 anos da Cosac Naify, será distribuída a instituições
Caixa será apresentada hoje na galeria André Millan; autor relaciona suas obras com a arte construtiva
e com o surrealismo Tunga lança caixa que não vai ser vendida
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA ILUSTRADA
Tunga mostrava seu documento de identidade e posava
para a microcâmera da portaria
quando cheguei ao prédio da
Cosac Naify para conversarmos sobre a caixa de livros, sete
ao todo, que ele apresenta hoje,
às 20h, na galeria André Millan,
e amanhã, às 19h, na livraria
Cultura do Conjunto Nacional,
em SP (no Rio, a apresentação é
na sexta, às 19h, na Livraria da
Travessa). A caixa, com 500
exemplares, não é um projeto
comum, a começar pelo fato de
que não será vendida, mas doada a instituições das áreas de
educação e cultura -e enviada
para algumas pessoas.
A proposta partiu de Charles
Cosac, que quis comemorar os
dez anos de sua editora com um
novo livro do artista, que a
inaugurara com "Barroco de
Lírios", dez anos atrás. A caixa
estará disponível em versão
eletrônica, no site da editora
(www.cosacnaify.com.br).
"Ela não é uma obra de arte;
é uma caixa de livros", ressaltou o artista quando já estávamos acomodados numa sala.
Antes, eu o havia provocado citando uma entrevista de Ferreira Gullar (Ilustrada, 20/
10), na qual o poeta e crítico
atacava a arte contemporânea
e ridicularizava o uso de moscas e larvas por um artista.
Tunga havia feito uma instalação-performance na qual usava
moscas. Mas ele preferiu ignorar o assunto. E começou por
explicar a caixa.
Programa de trabalho
"Não me considero um artista da década x ou y, mas dez
anos são um tempo bom de maturação. Esse livro reúne uma
visão ampla de um programa de
trabalho desenvolvido em lugares e países diferentes, em momentos diferentes."
Seu primeiro impulso foi começar a escrever textos teóricos. "Mas, à medida que a coisa
ia avançando, eu comecei a perceber que esses textos estavam
funcionando como um esqueleto que, ao modo de um corpo
humano, se rechearia e se cobriria de nervos, tutano, músculos, carne, pele, pêlos etc. E
de esqueleto mesmo ficariam
visíveis só os dentes. Vi que os
textos tinham uma importância fundamental para a estruturação, mas não para a leitura
dos livros."
Foi quando o cinema e a poesia entraram em cena. Tunga
começou a ver os livros "à maneira de filmes", que poderiam
apresentar uma espécie de narrativa das teorizações, menos
convencional e "muito mais
aberta, que te introduziria ao
trabalho a partir do resultado
do trabalho, ou seja, do universo de imagens que ele produz".
Ao mesmo tempo que eliminava teorizações, pensava em
publicar alguns textos poéticos.
"Os poemas foram entrando e
no fim me dei conta que era um
livro de poemas", diz.
A caixa traz poemas, entre
outros, do pai de Tunga, Gerardo de Mello Mourão (1917-2007), e de Arnaldo Antunes.
Participa também um jovem
autor carioca, que enviava cartas anônimas ao artista. "Chama-se Butica, de quem eu terminei ficando um grande amigo. Lógico, não é?"
Lógico.
Mas que lógica artística Tunga vê nesse seu "programa de
trabalho"?
Ele começa por declarar sua
filiação ao construtivismo.
"Penso no construtivismo como resultado de uma reflexão
que vem de [Paul] Cézanne
[1839-1906] e chega a um
[Georges] Vantongerloo [1886-1965], por exemplo".
"O outro pilar desses trabalhos" -prossegue ele- "estaria
quase que fincado no..."
"Surrealismo" -adianto-me.
"Não exatamente no surrealismo", contrasta. "Mas naquilo
que clareou o surrealismo, que
é a possibilidade de você fazer
uma construção rigorosa a partir do imaginário. Isso também
está relacionado à presença de
um olhar selvagem, de um outro olhar. Eu acho que essa vontade de criar um outro olhar é a
mesma do construtivismo e do
surrealismo", diz.
Ele demonstra cautela ao falar sobre surrealismo. Não gosta que seu trabalho, povoado
por uma série de elementos
simbólicos -tranças, crânios,
dentes, tacapes, sinos, taças-
seja associado, como já aconteceu, a um universo "mágico" de
artista do "Terceiro Mundo".
"Esse enunciado está carregado de uma ideologia redutora, como se a gente tivesse acesso ao vodu e não à razão. Como
se o produto do Terceiro Mundo fosse pré-racional. Uma pessoa me disse algo assim em Nova York. Eu expliquei para ela
que a obra de arte mais mágica
que eu conhecia se chamava
"Boogie Woogie", de um sujeito
chamado [Piet] Mondrian
[1872-1944]. Isso para mim era
mágica. Por mais que se analise
a estrutura dos "Boogie Woogies", não damos cabo do efeito
colateral que eles produzem. É
dessa mesma ordem o efeito
colateral que eu quero produzir. Ou seja, a partir de uma estrutura extremamente construída, criar um efeito demolidor da própria construção."
Arte e moscas
Embora parta de concepções
racionalmente controladas,
Tunga considera que, uma vez
realizadas, as obras de arte ganham novos significados.
"O trabalho pronto começa a
colocar inquietações e questões
que você não suspeitava. Isso
leva, evidentemente, a atitudes
artísticas mais lascivas, como
gente que acha que qualquer
coisa que seja feita é passível de
ser objeto de reflexão com a
mesma densidade do que aquilo que é construído minuciosamente e, eventualmente, produz uma necessidade de reflexão que extrapola a própria
construção".
Para ele, "na arte contemporânea não adianta colocar uma
mosca e ficar pensando sobre a
mosca. É preciso criar o contexto onde essa mosca seja alguma coisa. É preciso criar um
contexto para que as coisas tenham uma evidência estética e
se problematizem, e essa problematização faça de você não
um passante, mas uma testemunha. Ou seja, aquilo passa a
impregnar o sujeito que testemunha. E essa impregnação alguns espíritos levam um pouco
mais longe; outros passam como se fossem apenas moscas".
Pergunto se isso não seria,
afinal, uma resposta a Ferreira
Gullar? "Não. Foi só coincidência", ele responde.
NA INTERNET - Leia a íntegra
www.folha.com.br/073241
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