São Paulo, quarta-feira, 21 de novembro de 2007

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Tunga lança caixa que não vai ser vendida

Obra, que comemora 10 anos da Cosac Naify, será distribuída a instituições

Caixa será apresentada hoje na galeria André Millan; autor relaciona suas obras com a arte construtiva e com o surrealismo Tunga lança caixa que não vai ser vendida


MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA ILUSTRADA

Tunga mostrava seu documento de identidade e posava para a microcâmera da portaria quando cheguei ao prédio da Cosac Naify para conversarmos sobre a caixa de livros, sete ao todo, que ele apresenta hoje, às 20h, na galeria André Millan, e amanhã, às 19h, na livraria Cultura do Conjunto Nacional, em SP (no Rio, a apresentação é na sexta, às 19h, na Livraria da Travessa). A caixa, com 500 exemplares, não é um projeto comum, a começar pelo fato de que não será vendida, mas doada a instituições das áreas de educação e cultura -e enviada para algumas pessoas.
A proposta partiu de Charles Cosac, que quis comemorar os dez anos de sua editora com um novo livro do artista, que a inaugurara com "Barroco de Lírios", dez anos atrás. A caixa estará disponível em versão eletrônica, no site da editora (www.cosacnaify.com.br).
"Ela não é uma obra de arte; é uma caixa de livros", ressaltou o artista quando já estávamos acomodados numa sala. Antes, eu o havia provocado citando uma entrevista de Ferreira Gullar (Ilustrada, 20/ 10), na qual o poeta e crítico atacava a arte contemporânea e ridicularizava o uso de moscas e larvas por um artista. Tunga havia feito uma instalação-performance na qual usava moscas. Mas ele preferiu ignorar o assunto. E começou por explicar a caixa.

Programa de trabalho
"Não me considero um artista da década x ou y, mas dez anos são um tempo bom de maturação. Esse livro reúne uma visão ampla de um programa de trabalho desenvolvido em lugares e países diferentes, em momentos diferentes."
Seu primeiro impulso foi começar a escrever textos teóricos. "Mas, à medida que a coisa ia avançando, eu comecei a perceber que esses textos estavam funcionando como um esqueleto que, ao modo de um corpo humano, se rechearia e se cobriria de nervos, tutano, músculos, carne, pele, pêlos etc. E de esqueleto mesmo ficariam visíveis só os dentes. Vi que os textos tinham uma importância fundamental para a estruturação, mas não para a leitura dos livros."
Foi quando o cinema e a poesia entraram em cena. Tunga começou a ver os livros "à maneira de filmes", que poderiam apresentar uma espécie de narrativa das teorizações, menos convencional e "muito mais aberta, que te introduziria ao trabalho a partir do resultado do trabalho, ou seja, do universo de imagens que ele produz".
Ao mesmo tempo que eliminava teorizações, pensava em publicar alguns textos poéticos. "Os poemas foram entrando e no fim me dei conta que era um livro de poemas", diz.
A caixa traz poemas, entre outros, do pai de Tunga, Gerardo de Mello Mourão (1917-2007), e de Arnaldo Antunes. Participa também um jovem autor carioca, que enviava cartas anônimas ao artista. "Chama-se Butica, de quem eu terminei ficando um grande amigo. Lógico, não é?"
Lógico.
Mas que lógica artística Tunga vê nesse seu "programa de trabalho"?
Ele começa por declarar sua filiação ao construtivismo. "Penso no construtivismo como resultado de uma reflexão que vem de [Paul] Cézanne [1839-1906] e chega a um [Georges] Vantongerloo [1886-1965], por exemplo".
"O outro pilar desses trabalhos" -prossegue ele- "estaria quase que fincado no..."
"Surrealismo" -adianto-me. "Não exatamente no surrealismo", contrasta. "Mas naquilo que clareou o surrealismo, que é a possibilidade de você fazer uma construção rigorosa a partir do imaginário. Isso também está relacionado à presença de um olhar selvagem, de um outro olhar. Eu acho que essa vontade de criar um outro olhar é a mesma do construtivismo e do surrealismo", diz.
Ele demonstra cautela ao falar sobre surrealismo. Não gosta que seu trabalho, povoado por uma série de elementos simbólicos -tranças, crânios, dentes, tacapes, sinos, taças- seja associado, como já aconteceu, a um universo "mágico" de artista do "Terceiro Mundo".
"Esse enunciado está carregado de uma ideologia redutora, como se a gente tivesse acesso ao vodu e não à razão. Como se o produto do Terceiro Mundo fosse pré-racional. Uma pessoa me disse algo assim em Nova York. Eu expliquei para ela que a obra de arte mais mágica que eu conhecia se chamava "Boogie Woogie", de um sujeito chamado [Piet] Mondrian [1872-1944]. Isso para mim era mágica. Por mais que se analise a estrutura dos "Boogie Woogies", não damos cabo do efeito colateral que eles produzem. É dessa mesma ordem o efeito colateral que eu quero produzir. Ou seja, a partir de uma estrutura extremamente construída, criar um efeito demolidor da própria construção."

Arte e moscas
Embora parta de concepções racionalmente controladas, Tunga considera que, uma vez realizadas, as obras de arte ganham novos significados.
"O trabalho pronto começa a colocar inquietações e questões que você não suspeitava. Isso leva, evidentemente, a atitudes artísticas mais lascivas, como gente que acha que qualquer coisa que seja feita é passível de ser objeto de reflexão com a mesma densidade do que aquilo que é construído minuciosamente e, eventualmente, produz uma necessidade de reflexão que extrapola a própria construção".
Para ele, "na arte contemporânea não adianta colocar uma mosca e ficar pensando sobre a mosca. É preciso criar o contexto onde essa mosca seja alguma coisa. É preciso criar um contexto para que as coisas tenham uma evidência estética e se problematizem, e essa problematização faça de você não um passante, mas uma testemunha. Ou seja, aquilo passa a impregnar o sujeito que testemunha. E essa impregnação alguns espíritos levam um pouco mais longe; outros passam como se fossem apenas moscas".
Pergunto se isso não seria, afinal, uma resposta a Ferreira Gullar? "Não. Foi só coincidência", ele responde.


NA INTERNET - Leia a íntegra
www.folha.com.br/073241



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