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Por um jornalismo humanista
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
˛
Crianças adoidadas -festas
e férias-, universitários excitados -notas, diploma, carreira. Prazo fatal para as pesquisas de fim de semestre, trabalhos em grupo (em geral, tocados apenas por um), monografias finais. Zuenir Ventura, há
dois anos, no "Jornal do Brasil",
numa gostosa crônica, chamou
a atenção para a avalanche das
solicitações de entrevista que
recebia de estudantes de jornalismo, alguns nem sabiam grafar seu nome, ansiosos para
preencher os requisitos formais.
Sofro esse assédio, a tática de
defesa consiste em exigir um
mínimo de esforço -que anotem as respostas, porque a
maioria prefere que o entrevistado faça o trabalho do entrevistador. Se, por acaso, animam-se a um encontro pessoal,
dou um jeito de tirar das mãos
do futuro repórter as perguntas
que trouxe por escrito. Modesta
contribuição para desenvolver
a capacidade de perguntar. Ou
a vontade de saber.
Por razões alheias à minha
vontade, os pedidos aumentaram de repente. Noto, porém,
uma atitude diferente nos futuros colegas. Abismados, perplexos, perturbados. Fico condoído
em ver o idealismo (ou a ambição, talvez a combinação dos
dois) triturado pela realidade
do que lêem, ouvem ou assistem
na mídia. Assim como a parte
mais sensível do público, estes
que vão lidar com o público começam a divisar algo que não
está nos textos.
Para abortar novas solicitações, demandas acadêmicas e
questionamentos existenciais
dos jornalistas em gestação antecipo por escrito o que certamente vão perguntar.
O modelo de jornalismo praticado no Brasil está esgotado.
Auto-infectou-se, carece de antídotos autógenos. É um gigantesco faz-de-conta, armação joco-séria (como as tragicomédias de Antônio José da Silva no
século 18). Profissionais imaginam-se livres, empresas jornalísticas fingem imparcialidade.
Arrogância, onipotência e, às
vezes, perversidade escondem-
se atrás de um pretenso senso de
justiça que não resiste a qualquer avaliação mais profunda.
Com as honrosas e raras exceções.
A isenção é uma farsa, mera
distribuição de barbaridades
em todas as direções. O linchamento dá-se com uma foto inocente e uma legenda pretensamente objetiva. A goela escancarada de um âncora ou o falsete de outro são as provas irrefutáveis de uma infração sequer
investigada. "Comunicadores"
nas rádios pinçam duas linhas
nos jornais da manhã e, com
elas, montam catilinárias para
alimentar o dia inteiro.
As redações são "bunkers", escreve-se para aqueles que escrevem. O leitor que se dane. O sistema mediático, viga mestra do
processo democrático, converteu-se num pêndulo de clonagem e canibalismo, no qual todos se copiam e todos se digladiam. A concorrência não busca a pluralidade, a diversidade
ou a qualidade, mas a anulação
desta pela reiteração. Com as
honrosas e raras exceções.
Logo depois da morte da princesa Diana Spencer mencionei a
tabloidização da grande imprensa mundial. A prova estava
no próprio apelido, Lady Di,
contração do nome da infeliz
para caber num título garrafal
do jornal de pequeno formato.
A grande imprensa hoje está visivelmente impregnada pelo
baixo jornalismo. Com as honrosas e raras exceções.
O divulgador da primeira fofoca na Internet sobre o caso
Monica Lewinsky foi claro: "sou
repórter, não sou jornalista".
Estabeleceu-se, nesta virada do
século, uma linha divisória que
vai marcar todos os debates sobre o futuro de um serviço público que já foi chamado de
Quarto Poder. Colocou- se a
preciosa arte da reportagem
-busca permanente da verdade- nos porões de um negócio
que confunde credibilidade
com credulidade. Com as honrosas e raras exceções.
Quando em 1994 as parabólicas captaram uma conversa informal entre um repórter e o ex-
ministro da Fazenda Rubens
Ricupero, soltaram-se os mastins da mídia para estraçalhar a
honorabilidade de um homem
público que confessou aquilo
que os jornais praticam ostensivamente: quando cai a circulação, inventam-se promoções ("o
ruim a gente esconde..."). Ricupero foi salvo do justiçamento
sumário da mídia por seu confessor, que pediu um crédito de
confiança no ser humano.
Quatro anos depois, almas ensandecidas, estamos diante de
um paraíso niilista: ninguém
presta -de Lula a FHC. Paulo
Mercadante traiu o PT porque
deu as fitas ao adversário político. André Lara Resende prevaricou em favor de amigos que,
afinal, não ganharam. Seu avô
materno, Israel Pinheiro, vilipendiado ao longo de uma viciosa campanha de difamação
orquestrada por Carlos Lacerda, era um homem de bem. Esse
o seu mal.
A descrença fulcral na humanidade está na raiz de todos os
espasmos despóticos e "saneadores". O fascismo não é um
partido político, é uma psicopatologia, deformidade moral. Se
ninguém presta, os "eleitos" podem tudo. A Inquisição foi estabelecida porque a igreja não
acreditava na capacidade do
ser humano de eleger: converteu
escolha em heresia. O protofascismo austríaco do fim do século passado duvidava das instituições e dos valores que haviam contribuído para os avanços da sociedade: cultura, liberdade, leis, partidos.
As grandes falsificações da
história foram maquinações
dos fascistas, porque nessa paranóia justiceira não há lugar
para escrúpulos ou limites, o
que se pretende é obliterar o
senso de justiça: o "Affaire
Dreyfus" (1894) foi montado em
cima de um "telegrama azul"
produzido por um agente duplo
a serviço da direita militar
francesa. Os "Protocolos dos Sábios de Sion" com os planos de
uma pretensa dominação mundial judaica apareceram na
Rússia czarista (cerca de 1902),
bode expiatório para abafar a
rebelião. O incêndio do Reichstag (fevereiro de 1933) foi uma
provocação anticomunista dos
recém-empossados nazistas. O
Plano Cohen, armado pelos militares integralistas brasileiros,
tentou impedir as eleições e foi
pretexto para o Estado Novo
(1937). A "Carta Brandi" (1955)
foi um falso escândalo articulado pelo mesmo Lacerda para
melar as eleições de 1955 e prejudicar a chapa JK-Jango. Em
todos esses episódios a imprensa
foi protagonista. Salvo as honrosas e raras exceções.
O salutar ceticismo filosófico
converteu-se em perigosa certeza jornalística: todas as suspeitas são fundadas, todos os suspeitos, culpados. Impera a ambiguidade. Ninguém presta, todos na vala comum, humanidade sem crédito. Simulacro de
justiça -sem ritos, prazos, normas.
Visão de mundo a partir do
lodaçal, ótica da sarjeta. A última profissão romântica confunde-se com a mais antiga profissão do mundo. Instituição financeiramente quebrada, tenta
uma nesga de poder. Paga muito a poucos, ungidos para celebrar suas preferências e produzir lixo. Com as honrosas e raras exceções.
Descobrir as tais exceções, jovens amigos, acreditar nas distinções, combater as generalizações e o nivelamento por baixo é o desafio de um jornalismo
humanista.
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