São Paulo, sexta-feira, 21 de dezembro de 2001

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CRÍTICA

François Ozon desmonta expectativas levando a incertezas

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Desaparecer é uma coisa, morrer é outra. O segundo caso nos leva ao território da certeza, o primeiro só traz dúvidas.
É bem nesse âmbito que vive Charlotte Rampling (Marie) em "Sob a Areia". Logo no início do filme, seu marido desaparece tomando um banho de mar. Ou melhor: desaparece. Se se afogou tomando banho de mar, se sumiu como as pessoas que saem para comprar cigarro e nunca mais voltam, se se suicidou no mar ou em qualquer outro lugar, isso é coisa que não se pode saber.
Mais: eles formam um velho casal feliz. Não apaixonado à maneira juvenil, mas com um amor que se pode chamar de sólido -realizado, mas não terminado.
Quando as pessoas morrem, resta aos que sobrevivem um longo trabalho de luto: uma adaptação à nova realidade, o acerto de contas com as culpas etc..
Como Jean (Bruno Cremer) não morreu, mas está desaparecido, a situação de Marie é mais angustiante, e é dessa angústia que o filme de François Ozon trata.
Ou antes: estamos diante de uma situação em que o fio que separa o real do imaginário se torna tremendamente tênue. Marie precisa continuar a viver. Dá aulas de inglês, encontra-se com os amigos. Mas Jean nunca deixa de estar com ela. Talvez não se deva dizer que ele é um fantasma assombrando sua vida. Como o amor entre os dois, suas aparições são suaves, nada espetaculosas, nem assustadoras. Jean é uma imagem, uma presença.
Podemos pensar em filmes em que mortos aparecem (de "Ghost" a "Os Outros") como fantásticos, no sentido em que a imaginação se impõe à realidade, ou antes, em que a realidade deriva de nossa capacidade de imaginação. O que François Ozon parece fazer aqui é cutucar essa distinção. Em "Sob a Areia", o espectador permanece em estado de alerta, sem saber ao certo com o que está lidando.
Esse é o encanto do filme. Embora saibamos que a presença de Jean resulta da imaginação de Marie, sabemos que ela não é uma psicótica.
O marido não é uma visão, não surge do além. As reações de Marie, a maneira como fala do marido são, afinal, compreensíveis. Os amigos podem ficar um tanto estarrecidos com o que ela diz, mas não alarmados.
Desde "Sitcom", Ozon tem se pautado por um cinema que, se ainda não chega a fazer dele um dos grandes cineastas franceses em atividade, em todo o caso tem o dom de desmontar expectativas, de não se acomodar ao sentido dado das coisas.
Aqui, Ozon conduz o espectador a uma espécie de flutuação, digamos assim, na medida em que todo o tempo destrói nossa expectativa (que tem a ver com sentidos dados, sejam eles o luto, a loucura, o fantástico ou qualquer outro) e nos leva a um estado de incerteza, em que pouco a pouco nos enredamos, ao lado de Charlotte Rampling, numa aventura de que desconhecemos não só o final, mas em que os dados de que dispomos não permitem alicerçar nenhuma certeza quanto ao chão por onde se anda.
Sob a Areia
Sous le Sable
   
Direção: François Ozon
Produção: França, 2000
Com: Charlotte Rampling, Bruno Cremer
Quando: a partir de hoje na Sala UOL

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