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CRÍTICA
François Ozon desmonta expectativas levando a incertezas
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Desaparecer é uma coisa,
morrer é outra. O segundo
caso nos leva ao território da certeza, o primeiro só traz dúvidas.
É bem nesse âmbito que vive
Charlotte Rampling (Marie) em
"Sob a Areia". Logo no início do
filme, seu marido desaparece tomando um banho de mar. Ou
melhor: desaparece. Se se afogou
tomando banho de mar, se sumiu
como as pessoas que saem para
comprar cigarro e nunca mais
voltam, se se suicidou no mar ou
em qualquer outro lugar, isso é
coisa que não se pode saber.
Mais: eles formam um velho casal feliz. Não apaixonado à maneira juvenil, mas com um amor que
se pode chamar de sólido -realizado, mas não terminado.
Quando as pessoas morrem,
resta aos que sobrevivem um longo trabalho de luto: uma adaptação à nova realidade, o acerto de
contas com as culpas etc..
Como Jean (Bruno Cremer) não
morreu, mas está desaparecido, a
situação de Marie é mais angustiante, e é dessa angústia que o filme de François Ozon trata.
Ou antes: estamos diante de
uma situação em que o fio que separa o real do imaginário se torna
tremendamente tênue. Marie precisa continuar a viver. Dá aulas de
inglês, encontra-se com os amigos. Mas Jean nunca deixa de estar com ela. Talvez não se deva dizer que ele é um fantasma assombrando sua vida. Como o amor
entre os dois, suas aparições são
suaves, nada espetaculosas, nem
assustadoras. Jean é uma imagem, uma presença.
Podemos pensar em filmes em
que mortos aparecem (de
"Ghost" a "Os Outros") como
fantásticos, no sentido em que a
imaginação se impõe à realidade,
ou antes, em que a realidade deriva de nossa capacidade de imaginação. O que François Ozon parece fazer aqui é cutucar essa distinção. Em "Sob a Areia", o espectador permanece em estado de alerta, sem saber ao certo com o que
está lidando.
Esse é o encanto do filme. Embora saibamos que a presença de
Jean resulta da imaginação de
Marie, sabemos que ela não é uma
psicótica.
O marido não é uma visão, não
surge do além. As reações de Marie, a maneira como fala do marido são, afinal, compreensíveis. Os
amigos podem ficar um tanto estarrecidos com o que ela diz, mas
não alarmados.
Desde "Sitcom", Ozon tem se
pautado por um cinema que, se
ainda não chega a fazer dele um
dos grandes cineastas franceses
em atividade, em todo o caso tem
o dom de desmontar expectativas, de não se acomodar ao sentido dado das coisas.
Aqui, Ozon conduz o espectador a uma espécie de flutuação,
digamos assim, na medida em
que todo o tempo destrói nossa
expectativa (que tem a ver com
sentidos dados, sejam eles o luto,
a loucura, o fantástico ou qualquer outro) e nos leva a um estado
de incerteza, em que pouco a pouco nos enredamos, ao lado de
Charlotte Rampling, numa aventura de que desconhecemos não
só o final, mas em que os dados de
que dispomos não permitem alicerçar nenhuma certeza quanto
ao chão por onde se anda.
Sob a Areia
Sous le Sable
Direção: François Ozon
Produção: França, 2000
Com: Charlotte Rampling, Bruno Cremer
Quando: a partir de hoje na Sala UOL
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