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CONTARDO CALLIGARIS
Mudar de gênero
Projeto de lei nova-iorquino reconheceria a todo cidadão o direito de mudar de gênero
ATÉ ESTE começo de dezembro,
tudo indicava que o conselho
de saúde pública (Board of
Health) da cidade de Nova York
aprovaria uma lei autorizando qualquer cidadão a mudar de gênero em
sua certidão de nascimento e, conseqüentemente, em todos os seus documentos.
Bastaria pedir: não seria
necessário comprovar que o sujeito
tivesse mudado seu sexo anatômico
por uma cirurgia ou alterado seu
corpo pelo uso de hormônios. Não
seria sequer exigido que ele se vestisse e vivesse habitualmente como
uma pessoa do sexo oposto ao seu.
João, de terno e bigode, poderia se
apresentar no escritório previsto e
pedir para se tornar oficialmente
mulher. Inversamente, Maria, de
saia e cabeleira, poderia pedir para
tornar-se oficialmente homem.
O projeto de lei parece extremo e,
de fato, foi objeto de gozações ("Se
eu não gostar, posso mudar de novo?
Quantas vezes no ano?"). Mas, a
bem da verdade, ele era adequado,
por duas razões.
A primeira é que nenhum sujeito
pediria a mudança administrativa
de seu sexo se a questão não fosse,
para ele, mais que séria: vital. A segunda é que, hoje, o estado de nossa
ciência, biológica e psicológica, não
permite mesmo que um conselho de
especialistas (por mais bem escolhido que seja) assuma a responsabilidade de autorizar ou proibir uma
mudança administrativa de sexo.
Nessas condições, respeitar a palavra do sujeito interessado é, muito
provavelmente, o caminho em que
menos se erra.
Mas, antes de mais nada, algumas
explicações. Há sujeitos ("transgêneros") que sofrem porque seu sentimento profundo de pertencer ao
sexo masculino ou feminino não
corresponde à sua anatomia. Em
número mais ou menos igual para
cada sexo, há mulheres que se sentem homens e se vivenciam como
homens, e há homens que se sentem
mulheres e se vivenciam como mulheres. Ambos são cativos de corpos
que lhes parecem estrangeiros.
Quantos são? As estatísticas oscilam absurdamente: entre um sujeito
em cada mil e um sujeito em cada
100 mil. Por que existe tamanha variação? A categoria dos transgêneros pode ser delimitada de maneiras
muito diferentes: ela pode incluir
desde sujeitos (raríssimos) que nascem com os atributos sexuais de ambos os sexos até sujeitos (muito numerosos) que, esporadicamente,
sentem a necessidade de vestir a
roupa do sexo oposto - passando
pelos sujeitos que modificam (mais
ou menos radicalmente) seu corpo
para que corresponda a seu sentimento de identidade.
Para complicar a tarefa dos pesquisadores, existem transgêneros
"primários", em quem a discordância entre sexo anatômico e sentimento de identidade se manifesta
desde a infância, e transgêneros "secundários", em quem a discordância
se manifesta ou se agudiza na idade
adulta (às vezes avançada).
Seja qual for o número de transgêneros no mundo, em sua grande
maioria (90%, as estatísticas concordam) eles residem nas grandes
cidades, onde o anonimato permite
mais facilmente viver num gênero
diferente do que figura nos documentos e é mais fácil encontrar possibilidades de inserção social (sempre tristemente escassas).
Fato de difícil compreensão para
os "normais": os problemas de identidade de gênero não correspondem
a uma orientação sexual específica.
Um grande número de transgêneros
(a metade deles, segundo algumas
estatísticas) eram e continuam sendo heterossexuais, ou seja, eram homens que desejavam parceiras mulheres ou mulheres que desejavam
parceiros homens: ao mudarem de
gênero, eles não alteram seu desejo e
se tornam, de uma certa maneira,
homossexuais.
Pois bem, a lei proposta pelo conselho nova-iorquino foi retirada. A
proposta suscitou, obviamente, protestos "morais", fruto da ignorância
de quem confunde um drama do
sentimento de identidade com alguma forma de libertinagem. Mas, sobretudo, apresentaram-se problemas práticos ("New York Times" de
6/12): por exemplo, o que aconteceria com transgêneros que tivessem
mudado de sexo administrativamente e que, por alguma razão, fossem presos? Iriam para uma penitenciária masculina ou feminina? E
nos hospitais, como seria?
Essas objeções fazem sentido,
mas revelam quanto nosso mundo é
segregado pela diferença sexual. Homens à esquerda, mulheres à direita.
Quem não se enquadra, que se vire.
O Natal é sempre um bom momento para pensar em quem tem
uma vida especialmente difícil.
Boas festas a todos.
ccalligari@uol.com.br
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